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Blog da Lúcia Helena

É sério: o cérebro sempre se programa para um ano melhor

Lúcia Helena

28/12/2017 04h12

Crédito: iStock

Foi  Carlos Drummond de Andrade que escreveu a receita: "É dentro de você que o Ano Novo cochila e espera desde sempre". E não é que é verdade? Ponha as mãos agora mesmo na consciência, ou melhor, na cabeça, como quem suspira e exclama: "Ai, meu Deus, que 2017 miserável foi esse!" Sou capaz de imaginá-lo encostando as palmas por instinto quase nas laterais crânio, nem muito à frente, perto da testa, nem muito atrás, acima das orelhas. Coincidência ou não, é aí mesmo que está um 2018 prestes a acordar. É aí que mora, em você, a esperança.

Se quer o endereço exato –afinal, ninguém deseja perder a esperança–, é bem na transição entre o cortéx frontal e o temporal da sua massa cinzenta que se encontra um agrupamento de neurônios encarregados dos processos de antecipação. Por exemplo, você olha para os dois lados da rua e essa área antecipatória logo calcula se dará certo atravessá-la ou não. Assim como agora os mesmíssimos neurônios se agitam e calculam como você poderá atravessar mais doze meses sem ser atropelado por problemas, mágoas, confusões, erros cometidos –aliás, em resumo, são esses nossos enganos que despertam euforia por trocar a folhinha e ver uma agenda em branco

Pois me perguntaram por que as pessoas sempre têm a impressão de que é bom dar adeus ao ano velho e que tudo se realizará no ano que vai nascer. E isso tem a ver com uma vontade danada de deixar os erros anotados no passado, como quem joga fora os cadernos usados da escola. O que vale mesmo é guardar na memória as lições.

E eu achando que poetas só entendessem de coisas do coração, seu Drummond… O papo é cabeça. Trocar a vivência que não deu certo por uma atitude nova é algo capaz de animar até roedores em experimentos clássicos feitos nos laboratórios de psicologia. Que dirá em gente como a gente…

Eu, que já vivi alguns réveillons, aprendi a pedir ajuda em vez de sair chutando. Por isso, fui atrás do doutor Ricardo Monezi, psicobiólogo, professor de neurologia da Pontifícia Universidade Católica e pesquisador da Universidade Federal de São Paulo. Se os neurônios têm lá os seus motivos para fabricar a ideia de que 2018 será mesmo diferente (mais fácil, mais feliz, mais gostoso), ele seria a pessoa certa para justificar esse comportamento.

Conversa vai, conversa vem, descubro: faz parte da natureza do cérebro sempre se programar para um ano melhor do que o anterior. Para entender, você precisa lembrar que ele é completamente orientado pela noção de ciclos, como aqueles marcados pelo ambiente —  a claridade do dia seguida pela escuridão da noite. Os ciclos também podem ser internos, como um organismo de criança, que se torna adulto e, depois, idoso. Existem ainda os ciclos que foram simplesmente inventados, como este de um ano de 365 dias que, em 1582, o Papa Gregório XIII promulgou ouvindo os astrônomos de plantão. Não importa. Não adianta querer ser do contra: sua mente acredita. Mais um ciclo. Hora da virada.

Se anoitece, se você envelhece ou se o calendário muda, a reação é a mesma. A percepção do encerramento de qualquer espécie de ciclo faz a tal área antecipatória iniciar uma intensa comunicação com outras regiões cerebrais. É a tal da reflexão. Biologicamente, em indivíduos saudáveis, ela é inevitável. Não tem escapatória. Lá no fundo você está fazendo a retrospectiva do ano — que, espero, não seja tão chata quanto a da tevê e a da revista.

Rever o ciclo abastece de dados os neurônios da antecipação. Ora, desde sempre, o sistema nervoso é condicionado na base de tentativa e erro, muito antes de o bebê que engatinha arriscar a se levantar e levar o primeiro tombo. E, a cada erro, os neurônios se modelam para errar menos. E, óbvio, evitar sofrimento.

Isso porque outro pedaço do sistema nervoso importante nessa história é o sistema límbico, bem no miolinho dos seus miolos, onde são processadas as emoções. Decididamente, ele pune os erros. De novo, até os ratinhos de laboratório sabem disso… Surgem reações que vão do medo à agressividade. O martelar desses desenganos, quando se acumula e fica forte demais, ai, ai…

Já a chance de zerar tudo estanca, do ponto de vista neuronal, o castigo. Faz o cérebro derramar dopamina, substância ligada ao bem-estar. Faz mais: ordena a liberação de hormônios do estresse, só que em doses muito controladas. Monezi descreve a reação como "elegante". E ela é mesmo, toda orquestrada para nos fazer seguir e nos superar. O trio adrenalina, cortisol e noradrenalina gera o estado mental de ânimo e comprometimento com as ações planejadas. Esse estresse positivo é a base química do otimismo e da proatividade. Do ponto de vista dos neurônios, sem esse mecanismo desistiríamos de tentar acertar. Triste, paralisante e simples assim.

Sabe o que é curioso, para você aplicar neste finalzinho de 2017, início de 2018? O cérebro precisa de âncoras visuais. O número 1, do primeiríssimo dia do primeiro mês do ano, é uma âncora incrível, concluem certos experimentos. Portanto, visualize essa data. Vale tudo: rasgar o calendário antigo, comprar um diário na papelaria, ficar de olho nos fogos lá no alto. Ajude o seu cérebro, que crê mais quando vê.

Mas, principalmente, procure manter o estresse positivo todos os dias. Tanto eu como você, nós vamos errar de novo. E de novo. E de novo. Pra que esperar até a virada de 2019, não é mesmo? Lembre-se: para os nossos sábios neurônios, cada vez que um dia amanhece é réveillon também. Feliz ciclo novo!

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.