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Blog da Lúcia Helena

Quando as bactérias do seu intestino vão ao treino

Lúcia Helena

01/02/2018 04h00

Crédito: iStock

Afinal, você é um homem ou um punhado de bactérias? De tanto rever os seus conceitos, a ciência pode chegar à conclusão de que a segunda opção é a resposta mais adequada. Quando estiver diante de um espelho, lembre-se: o corpo que você vê refletido ali é formado por uns 30 trilhões de células humanas e por outros 39 trilhões de células de bactérias. Isso mesmo, 39 trilhões!

E olha que, só para aliviar e a gente não se sentir biologicamente humilhado, estou excluindo do cálculo outros tipinhos microscópicos, como vírus, protozoários, fungos… Sim, somos minoria em nós mesmos. Conforme-se.

Seu organismo talvez não passe de um conjunto habitacional de bactérias e outros seres. Uns pagam pela casa e pela comida na moeda da saúde. Outros são uns folgados, não ajudam nem atrapalham em nada — ficam de boa aqui, no meu corpo, e bem aí, no seu. E, como em todo canto, existem os arruaceiros. Estes, no caso, quando armam confusão, criam condições para a obesidade, o diabetes, diversos problemas de pele, alergias de todo tipo, transtornos de humor dos mais variados, autismo, doenças reumáticas, reações autoimunes e — ufa! — mais, muito mais.

Aposte: em um futuro nada distante, a abordagem médica de todos esses males passará por exames que são como um recenseamento dessas populações e por terapias para promover, digamos, a troca de alguns moradores. Estudar as regras desse condomínio que é o seu corpo, com todos esses inquilinos, é a novíssima fronteira da Medicina. Nós ainda vamos falar muito disso.

As investigações focam principalmente a microbiota intestinal. Faz sentido, porque 70% das bactérias que habitam o corpo humano colonizam o intestino. E vou lhe dizer mais: tirando umas quatro ou cinco bactérias comuns em toda a humanidade, o restante dessa população, tanto em matéria de quantidade quanto de variedade, é uma combinação exclusiva, individual, quase tão particular quanto a sua impressão digital.

Por isso mesmo, o bioquímico Jonathan Scheiman, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, se dedica a descobrir o que os esportistas de altíssima performance têm de tão único, diferente dos mortais não atletas. Ou melhor, o que existe de especial dentro do seu intestino. Nem pense em meleca!

Pois saiba que, segundo Scheiman, os microorganismos do intestino afetam a maneira como os esportistas obtêm energia, facilitando ou, ao contrário, atrapalhando a quebra de proteínas e carboidratos provenientes da alimentação. Ele quer, justamente, identificar os micróbios da boa performance, isto é, aqueles que otimizam o aproveitamento dos nutrientes.

O bioquímico americano nos conta ainda que alguns desses micróbios estão envolvidos em processos inflamatórios, liberando na circulação moléculas que indiretamente ajudam na recuperação de lesões ocorridas nos treinos. Não termina aí. Certas habilidades do sistema nervoso, como o bem-vindo reflexo, também são influenciadas por substâncias secretadas pelas benditas bactérias intestinais.

No final do ano passado, Scheiman e seus colegas apresentaram um estudo com vinte atletas da maratona de Boston. Os participantes fizeram um teste para rastrear os genes das bactérias que povoavam o seu intestino. A ideia era observar se havia alguma mudança nessa comunidade uma semana antes e uma semana depois da prova. Não deu outra.

Os cientistas então notaram um pico de determinados micróbios no exame feito depois da corrida. E, mais tarde, descobriram que os bichinhos que se multiplicaram tinham uma incrível vocação para partir em pedaços as moléculas de ácido lático liberadas durante o exercício intenso. Estava explicado o excelente desempenho daqueles corredores.

É que entenda: o ácido lático é justamente  a substância que leva a musculatura à fadiga. Ou seja, Scheiman está convicto de que os melhores maratonistas têm uma vocação, diria, intestinal para suportar o trajeto de 42 quilômetros sem ficarem tão cansados. Graças, já sabe, às suas bactérias.

Os cientistas também suspeitam que o perfil da microbiota intestinal possa mudar conforme as exigências de cada esporte. Para os maratonistas, por exemplo, as tais bactérias que quebram o ácido lático e, com isso, retardam a chegada da fadiga são um enorme diferencial. É possível que, treino após treino, elas acabem vencendo a competição com outros micróbios e dominando o pedaço.

No entanto, usar mais glicose para correr desembestadamente pode ser ainda mais importante para um velocista de 100 metros — e, sim, certas bactérias no intestino ajudam até nisso. A turma da nutrição esportiva, não à toa, começa a ficar ligada nelas, observando que dieta seria campeã para reforçar a presença de micróbios mais interessantes conforme cada caso ou modalidade.

Fica fortalecida a ideia de que o desempenho físico começa mesmo em nossas tripas. Afinal, desde que estejam em equilíbrio, as bactérias presentes ali fariam o metabolismo a funcionar nos trinques e tornariam a digestão mais eficaz, melhorando o aporte de nutrientes. E, se fazem tudo isso pelo atleta, profissional ou amador, a recíproca também é verdadeira. Ou seja, treinar mexe com a população das bactérias que nos habitam.

Isso fica mais claro nos primeiros anos de vida. Quando a criança ou o adolescente leva um estilo de vida ativo, o intestino cede mais espaço para bactérias que estão muito relacionadas à longevidade e a um menor risco de problemas de memória, por exemplo.  E, uma vez bem instaladas na juventude, costumam ficar no mesmo endereço para sempre, controlando aqueles vizinhos arruaceiros. Diante de tudo isso, começo a pensar que são elas que merecem o pódio.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.