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Blog da Lúcia Helena

Metade das mulheres que treinam demais acaba fazendo xixi nas calças

Lúcia Helena

22/02/2018 04h00

Esportes intensos incontinência urinária

Crédito: iStock

Escapou! E agora senta que lá vem tabu. Dos grandes. Se muita gente coloca um limite claro e não deixa a conversa invadir essa área tão feminina quando o assunto é o prazeroso rala-e-rola do sexo, as dores e as delícias do parto normal ou, vá lá, o martírio na hora de depilar ali, bem ali, imagine então o desconforto de escancarar o seguinte:  na era do crossfit e de outras modalidades pegando pesado, por total falta de orientação, tem muita mulher deixando escorrer urina nos momentos mais inconvenientes. Ou que verá isso acontecer mais dia, menos dia. Antes, durante e depois dos treinos. E malhadoras jovens, ouviu bem?

Perto de 50% das praticantes de esporte competitivo e das mulheres que, embora não sejam atletas profissionais, se dedicam a treinos frequentes e intensos deixam urina sair sem querer. Mas ninguém comenta esse assunto. Às vezes, nem com os próprios botões. Foi só uma gotinha dissimulada, quer se enganar a mulherada. Troca-se a lingerie e não se fala mais nisso. Ai, ai, meninas…

Solto o verbo. Já começo acusando o povo freudiano de falta de precisão quando diz que as mulheres têm inveja do pênis. Senhores, um motivo legítimo para o olho gordo seria a uretra, esse canal por onde escoa a urina (e que no caso dos moços é flex, porque por ali também passa o esperma). Ter, em média, de 12 a 14 centímetros de uretra é que é invejável, isso sim — ela acompanha toda a extensão do membro masculino. Já nós, mulheres, temos apenas 2,5 centímetros de percurso entre a bexiga e a saída. Esse tamanho é documento.

É por causa dessa diferença de medidas que, dos cerca de 10 milhões de brasileiros com incontinência urinária, a minoria é do sexo masculino. Homens, em geral, só sofrem do problema quando, por exemplo, passam por uma cirurgia de próstata e esse é um dos riscos da operação. Com as mulheres, pra variar, as coisas são mais complicadas…

Se atletas profissionais e até mesmo esportistas e malhadoras comuns não derem uma força à uretra e aos seus arredores, já viu… Força, ao pé da letra, para aguentar tanto exercício.

Sei, parece contraditório que algo capaz de esculpir um corpo firme e sarado — o esporte —  possa deixar as mulheres derrubadas "ali". É, mas acontece. Principalmente em modalidades como as corridas de longa distância (maratonistas, atenção!), a ginástica olímpica,  a cama elástica, os esportes de quadra em geral, a musculação e, por último, mas chegando pra arrebentar (na intimidade feminina,  não exatamente no bom sentido), o crossfit .

Fui entender esses casos conversando com a uroginecologista Zsuzsanna Ilona Katalin de Jármy Di Bella, professora da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo, onde  hoje coordena a área de planejamento familiar. Em 2005, porém, Zsuzsanna fundou ali uma área pioneira no país, a da ginecologia do esporte, hoje sob o comando de sua colega, a médica Maíta Poli de Araújo.

Aliás, esse campo só surgiu porque algumas profissionais de saúde que eram também esportistas — Zsuzsanna sempre praticou  ginástica artística — notaram que várias pacientes jovens com perda involuntária de urina faziam muito exercício. Claro, a atuação da ginecologia do esporte vai além da prevenção e do tratamento da incontinência urinária. Seus especialistas ajustam, por exemplo, o ciclo mentrual de uma atleta conforme o calendário de competições. A TPM que pode provocar faltas no esporte coletivo é até desejável para uma lutadora.

Só que a incontinência nunca é bem-vinda. E acontece por causa da sobrecarga. Assim como os joelhos e outras articulações devem aguentar seis vezes o peso do corpo em cada passo da corrida — usando essa modalidade como exemplo —,  o assoalho pélvico também precisa suportar uma carga multiplicada. Ele engloba diversos  músculos. Impossível não citar um deles, fundamental, que é o elevador do ânus. Respeite-o, porque, sem a sua sustentação, o dia a dia seria um vexame atrás de outro.

Há ainda o hiato genital, o rasgo feminino que abriga três buracos— o ânus, a vagina e a uretra. Esta, por sua vez, é complexa, formada por vasos, músculos e tecidos conjuntivos. Juntos, eles provocam um aperto que impede o menor pingo de escoar sem controle.

Todo esse conjunto fica escangalhado se você, ao fazer força exagerada para levantar halteres, provoca uma tremenda pressão interna dos órgãos sobre a região. A mesma pressão ocorre quando a jogadora de vôlei dá o salto de uma cortada  — menos mal, ele dura segundos, em comparação com as passadas da maratona fazendo útero, bexiga e tudo mais martelar sem parar o tal do assoalho. Ele então vai arregando. A frouxidão pode transformar aquela uretra, que em matéria de tamanho nunca foi grande coisa, em um caminho mais curto ainda. Bobeou e o xixi se derramou.

Em quadros mais extremos, pra complicar de vez,  tudo vai despencando por cima do pobre assoalho. A bexiga pode cair. Idem,  o útero.  Gestação é outro peso e tanto. Por isso, no caso das esportistas, muitas vezes a incontinência aparece por volta dos 40 anos, quando a mulher já teve um ou mais filhos.

Digamos que, se não cuidou do assoalho nos nove meses de espera e depois do parto, a mulher já está com meio caminho andado, ainda mais se deu à luz um bebê grande. E tudo piora — ô, chatice —  na menopausa, porque o hormônio estrogênio faz falta. Ele ajudaria a manter o tônus da musculatura ao redor da uretra.

Vale esclarecer que a menopausa também provoca um outro tipo de incontinência, a da bexiga hiperativa. Aqui, porém, estamos falando da incontinência de esforço, que não tem idade  e pode apresentar os graus mais variados. Em geral, a urina começa a escapar durante alguns movimentos do exercício. Um belo dia, sai com o espirro ou no chacoalhar de uma gargalhada. Se nada for feito, chegará o momento de a roupa ficar molhada só de a criatura se levantar de uma poltrona mais funda.

E quer saber de outra enorme roubada? Torrar calorias no treino e não compensar esse gasto no prato. Esse é um erro comum de atletas, especialmente em modalidades como o ginástica olímpica, em que um corpo magro e leve conta pontos. E é também um mau comportamento  de quem busca a todo custo uma barriga chapada. Decididamente, na falta de energia, o organismo não prioriza manter o assoalho pélvico…

A médica Zsuzsanna Di Bella avisa: fazendo ou não esporte, as mulheres, desde a adolescência, deveriam adotar o hábito preventivo de contrair os músculos pélvicos algumas vezes por dia. O ideal seria repetir o movimento de quem quer segurar o xixi e o cocô dez vezes, sustentando cada contração por alguns segundos.  As esportistas podem (e devem) contrair o assoalho desse jeito até mesmo durante os treinos. Para elas, a fisioterapia é bem-vinda quando já há qualquer perda de urina. Ora, para que deixar tudo piorar com o tempo? Ou, igualmente ruim, largar a atividade física?

A preocupação, agora, é com a onda do crossfit.  Tanto que a Unifesp, da professora  Zsuzsanna, ao lado de outros centros espalhados pelo país, inicia um levantamento entre as suas praticantes. Tudo indica que elas não sejam tão fortes quanto imaginam… Porque estão se esquecendo de lá, de lá mesmo. Você já sabe do que estou falando.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.