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Blog da Lúcia Helena

Olhe para este salmão: será que pode mesmo me dizer o que você come?

Lúcia Helena

27/02/2018 04h00

Salmão grelhado

Crédito: iStock

Se a resposta é sim, vou lhe dizer que, a partir de certo ponto, você está chutando. E que ponto é esse? O das moléculas. Ah, eu também achava que, quando alguém me dizia que um alimento estava cheio desse ou daquele nutriente, sabia do que estava falando. Na verdade, algumas vezes sabe. Mas nem sempre com muita precisão. O salmão, por exemplo. Ninguém vai negar que ele tem ômega 3. Agora me diz, quanto?  Você não pode me dizer. Quase ninguém poderia.

E esse ômega — minha nossa! — é a gordurinha mais badalada do mundo. Em tempos em que a comida assume ares de remédio (eca) ou de veneno (credo), o ômega 3 vem engordando uma lista de benefícios. Todos cientificamente comprovados. Ajuda a perder peso, algo que você poderia esperar do chuchu cozido na água sem sal, mas nunca de uma gordura no prato, quem diria. Fortalece ainda o sistema imune e previne inflamações. Por isso mesmo, por tabela, afasta o câncer e, possivelmente, problemas nas artérias.

Torna os ossos resistentes — se você acha que eles sobrevivem firmes e fortes só à base de cálcio, se engana…  Ômega 3 na mesa nossa do dia a dia evita até olho seco e isso não é piada. Sim, tem gente estudando sua ação no globo ocular. Para completar, ele melhora a memória. E, por falar nela, quem sabe se lembre que escrevi sobre a gordura do salmão noutro dia…

Da outra vez, comentei uma pesquisa demonstrando que o consumo de suplementos desse nutriente parecia não diminuir o risco de infarto. Entendo os corações decepcionados, já que muitos consomem essas cápsulas querendo evitar essa encrenca. E, então, teve gente questionando se o trabalho falava em EPA, em DHA…

Sei que é difícil engolir tanta letrinha. Resumo: o ômega 3 é uma gordura poli-insaturada das boas, que precisa ser obtida por meio da dieta porque você não é capaz de fabricá-la. Mas existem tipinhos diferentes de ômega 3. Uns não conseguem ser aproveitados de imediato pelo seu corpo.  Já a dupla DHA e EPA, encontrada em pescados, vem pronta para uso. Vapt-vupt, fazem o que é preciso fazer em seu organismo.

As duas são moléculas de ácidos graxos de cadeia longa, diz a ciência. Em outras palavras, são feito um colar de contas, sendo cada conta um carbono e… Vou parar por aqui. Você quer comer salmão e não, páginas de um livro de química, imagino.

Mas aí é que está. Em matéria de comida, muitas vezes desconhecemos a intimidade  química de alimentos dos mais comuns e olha que nem estou falando em processados. Antes de sair dizendo o que eles fazem ou deixam de fazer no seu corpo, seria bom enveredar por um campo recente da ciência que atende por metabolômica. Ele aponta a interação das moléculas do que a gente come com o bendito metabolismo. É a hora do vamos-ver, do funciona ou não funciona. Para isso, óbvio, precisamos conhecer, antes de mais nada, as moléculas que estão em jogo…

Só que, por enquanto, para usar o salmão apenas como exemplo, mal sabemos quanto EPA e quanto DHA  esse peixe teria pra valer. Daí que podemos criar falsas expectativas. Ou, no sentido aposto, denegrir a imagem de um alimento sem motivo.

Quem acabou com a minha ilusão de que os cientistas conheciam de longa data o perfil de gorduras do salmão  foi a professora Hellen Maluly, farmacologista pós-graduada em engenharia de alimentos, que organiza uma pesquisa sobre o pescado no Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp.

Ao ver a polêmica sobre o ômega 3 dos suplementos , ela logo me escreveu: "participo de uma investigação com diferentes tipos de salmão e, quando tiver os resultados, vou lhe contar'. A professora Hellen é de uma empolgação contagiante. Será que achou que eu conseguiria esperar? Ainda bem que não esperei. Porque assim compartilho com você como a espectrometria de massas  — último nome complicado deste post, eu prometo! — poderá mudar nosso patamar de compreensão dos alimentos.

O laboratório coordenado pelo professor Marcos Nogueira Eberlin, na Unicamp, é referência mundial nessa metodologia, que pode ser empregada em diversas áreas da ciência. Na investigação do salmão, Hellen e sua parceira de projeto, a pesquisadora Rosana Alberici, simplesmente colocam uma posta sobre um pedaço de papel. Na sequência, pingam algumas gotinhas de solvente. O salmão é aquecido por uma luz e, voilà!, bastam três minutos para o equipamento entregar de bandeja o peso de cada uma das moléculas daquela porção.

Adianto uma pitada do que ainda será publicado: o salmão de cativeiro proveniente do Chile, o tipo mais encontrado nos supermercados brasileiros, de fato tem menos DHA e EPA do que o salmão selvagem. Os criadores até alimentam os peixes com rações cheias de ácido linolênico, forma de ômega 3 que seria transformada por enzimas em DHA e EPA. Mas, ao que tudo indica, diferentemente do tipo selvagem que segue o relógio da natureza, os pescados de cativeiro vão parar no seu prato às pressas, bem antes do prazo suficiente para essa metamorfose acontecer, então…

É uma enganação consumi-los? Nada disso! Têm menos, mas têm DHA e EPA, sim. Vamos tirar da cabeça a ideia de que o salmão que encontramos por aí não oferece ácidos ômega.

Só fiquei me perguntando como a professora Hellen, que sempre fez trabalho sobre sabores, foi parar na onda da espectrometria. E ela, com o entusiasmo de sempre, ressaltou que a ciência já descobriu que a gordura tem um gosto que é só dela. Antes, achava-se que esse nutriente apenas produzia uma sensação tátil de maciez na boca. Hoje é sabido que existem receptores na língua especializados em captar o sabor gorduroso.

Aliás, a espectrometria de massas pode até mesmo dizer que moléculas aromáticas um alimento contém, vencendo de longe a sensibilidade de qualquer nariz de gourmet. Porque, se você pensa que a ciência conhece cada detalhe de tudo o que você está comendo, saiba que  — para o bem e para o mal, em tempos de tantos questionamentos — essa era está apenas começando.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.