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Blog da Lúcia Helena

Doenças raras: faz toda a diferença você saber do que estou falando

Lúcia Helena

01/03/2018 04h00

Crédito: iStock

São muitas. Perto de 8 mil, umas bem diferentes de outras. E são muitos. Cerca de 13 milhões de brasileiros têm uma dessas doenças raras. No mundo inteiro, os "raros" são de 420 a 560 milhões. Portanto, chamá-los assim é quase uma licença poética.

Pare para pensar: juntos, então, não são poucos. Ao contrário. São tão ou ainda mais numerosos do que portadores de problemas bastante comuns que todo mundo conhece, como o diabete. No entanto, é possível que cada um deles se sinta como uma ilha isolada pela ignorância geral de sua condição, inclusive por parte dos médicos.

E quando alguém, como você, descobre ao menos que existe isso — as tais doenças raras —,  significa um tijolo na ponte que poderá tirar uma criança, já lembrando que 75% dos portadores são crianças, da solidão de seu sofrimento até um diagnóstico.

Sim, às vezes saber o nome daquilo que se tem, entender um pouco toda uma estranheza, já é um remédio e tanto.  E cada um de nós pode encurtar esse caminho que sempre, salvo rara — aí, sim, raríssima — exceção, costuma ser uma peregrinação de anos a fio.

Uma doença não é rara porque faz assim ou faz assado, causa esse ou aquele sintoma, provoca isso ou aquilo no corpo. É rara por uma linha de corte que junta um bocado de situações completamente diversas em um mesmo saco de gatos:  porque ela aparece em somente um em cada 2 mil indivíduos de determinado país. Ou seja, todo canto deste mundo tem o seu próprio rol de doenças raras.

Se quer ter ideia do que significa essa proporção de apenas 1 paciente entre 2 mil pessoas, basta lembrar que é a metade do que encontramos de portadores de síndrome de Down. Mesmo assim, com certeza, eu e você já topamos pela vida, e com razoável frequência, com um caso raro. Será que eu e você sabíamos disso? Será que eles próprios, os doentes, ou seus pais sabiam?

Na hora do diagnóstico, a doença rara sempre vai parar no final da fila de suspeitos, como ouvi da geneticista Ana Maria Martins, professora da Universidade Federal de São Paulo. Isso porque os médicos, que nunca ouviram falar dessas condições no banco da faculdade, afastam primeiro todas as mazelas comuns — que, vamos combinar, não são poucas, daí que nada anda.

Seria preciso estar dentro um de seriado americano, com um doutor House correndo atrás de pistas. Mas a vida real não é série de tevê e leva-se bem mais do que a duração de um episódio para um doente raro descobrir o que ele tem. De, no mínimo,  cinco a absurdos 30 anos, está bom para você? Não, é claro que não.

A doença, muitas vezes, é que não espera esse tempo todo: 30% das crianças "raras" morrem antes do quinto aniversário. Muitas sem a chance de saber exatamente o que tinham.

Os sintomas confundem à beça. Não dizem coisa com coisa. E, volto a frisar, os de uma doença rara costumam não ter nada a ver com os de outra doença igualmente rara. Vamos tomar o exemplo da doença de Fabry, na qual falta ao indivíduo uma enzima. E enzimas são moléculas de que o organismo precisa para o sem-número de reações do seu metabolismo. Quando umazinha delas está ausente por um defeito genético — ah, aproveitando, oito em cada dez doenças raras têm origem nos genes —, a encrenca é enorme.

Na doença de Fabry, imagine um menino que sente um ardor nas mãos e nos pés, beirando o insuportável, ao ficar com febre. Ele berra.  Berra até mais quando tenta jogar futebol — e, aí, porque o exercício físico também eleva a temperatura do corpo. Agora, imagine uma mãe chegando no consultório e dizendo que o filho urra por causa dos pés e das mãos quando bate uma bola. Ela terá alguma sorte se sair de lá com um antiinflamatório.

Talvez ninguém — como provavelmente ela, conhecedora-mór do filho que tem como todas as mães — estranhe uma queimação forte que só aparece pra valer durante estados febris e nas aulas esporte. No entanto… No entanto, a doença de Fabry pode prejudicar rins e coração. E quem deu pelota para aquele ardor?

Existem exemplos assim, um atrás de outro. Só mais um: o da menina que mal conseguia fazer abdominais na infância. E que, por isso, era chamada de preguiçosa na Educação Física.  Anos depois, adulta com mais de 30, descobriu ser portadora de uma distrofia muscular capaz de piorar ano após ano, enfraquecendo seu corpo para todos os movimentos.

Faltam, para desatar o nó que amarra o diagnóstico precoce, geneticistas médicos. É sarcasmo, mas eles, à sua maneira, são igualmente raros: não temos nem sequer 300 geneticistas clínicos neste país. Parênteses: quando a Medicina, em praticamente todas as suas áreas, avança pela trilha das terapias-alvo, aquelas que acertam em cheio em uma molécula do corpo, sei não no que vai dar essa falta de geneticistas….

Para complicar ainda mais, temos palavras bonitas escritas em uma portaria, a 199, determinando como deveria ser a atenção às pessoas com doenças raras, mas — adivinhe! — está tudo parado no papel. Até o momento, só temos sete centros no país prontos para acompanhar esses casos, que dependem de tratamento multidisciplinar.

Sem contar a briga triste das famílias para obter remédios, por força da Justiça. Sem acesso a eles, todos os dias morrem duas pessoas com doenças raras no Brasil. Não sou de falar em política de saúde pública. Minha praia é outra, em geral mais esperançosa, ao explicar o corpo humano, a doença, a saúde… Mas não tenho como me esquivar de lhe contar o pé das coisas.

Também preciso lhe dizer que, daquelas quase 8 mil doenças raras, só existe remédio para umas 100. O tratamento não é necessariamente uma droga nova, caríssima, como talvez esteja imaginando. Medicamentos antigos e baratos funcionam em certas situações. Há casos em que bastam suplementos, ajustes de dieta… Por vezes, a saída também pode ser complexa, envolvendo terapia genética ou transplantes.

Em relação aos outros casos, a maioria, a medicação agirá apenas sobre os sintomas. Mas o acompanhamento de médicos, psicólogos, fisioterapeutas, nutricionistas e outros profissionais fará enorme diferença.

Sobretudo, como lembra a geneticista Dafne Horovitz, do Instituto Fernandes Figueira da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, encontrar pares na mesma situação e trocar experiências, compartilhar saídas e sair da ilha do isolamento já é um tratamento e tanto. Alívio imediato.

Na maioria das vezes, os pais começam a desconfiar de algo errado — ou passam a não se conformar com a sentença apressada dos médicos diante de sintomas errantes —, apoiados pelo que ouvem de amigos ou pelo que encontram no doutor Google, com todos  seus prós e contras. Você irá ajudar se puder lembrá-los que existem casos assim, raros e preciosos.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.