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Blog da Lúcia Helena

A maneira como seu filho come é mais importante do que aquilo que ele come

Lúcia Helena

29/04/2018 11h24

Crédito: iStock

Escrevo sem experiência própria, só de olho no cadeirão da mesa vizinha. Isso porque meus filhos, hoje crescidos, sempre foram uns ogrinhos omnívoros — comiam de boa e comiam de tudo. Tirei bilhete premiado, então. E duas vezes! No Brasil, a  refeição da criançada é uma batalha para até 57% das famílias. A colher vira arma. O brócolis, inimigo. Os lábios do bebê se transformam trincheira intransponível. A paciência de todos explode. O filho berra, a mãe chora, o pai sai da mesa.

As dificuldades alimentares frequentemente formam um território de guerra no lar, agridoce lar. 

A expressão usada pelos profissionais de saúde é essa mesmo: dificuldades alimentares. Elas englobam desde problemas um tanto complexos, como o comportamento desafiador de crianças autistas à mesa, até situações bem mais simples, como um nariz entupido. Ressalvo: se o dono do nariz entupido tiver por volta de 1 ano, para ele isso não será nada simples, coitado.

Nessa idade, a gente mal consegue respirar pela boca, orifício por onde o ar compete com mãozinhas, brinquedos, chupetas, mamadas e… comida! Então, seja solidário com a irritação do pequeno se, por causa de uma sinusite ou de outro mal crônico, ele vive com as narinas obstruídas. Comer, para ele, não será exatamente a atividade mais serena do dia. E, claro, sua disposição para frutas , arroz, feijão, bife — o que for — será outra quando a questão nasal for resolvida. Seu problema não está no prato, mas bem diante, oops, bem dentro do seu nariz.

Aprendi esta e outras ao assistir a mais uma palestra ministrada pelo pediatra e nutrólogo Mauro Fisberg, um dos maiores especialistas no assunto do país e, talvez, do mundo — tanto que já participou de investigações a respeito da alimentação de crianças conduzidas na América Latina, na Europa e na Ásia. Professor da Universidade de São Paulo e coordenador do Centro de Dificuldades Alimentares do Instituto PENSI do Hospital Infantil Sabará, na capital paulista, ele declarou: "Mais do que nos preocupar com os nutrientes que a criança ingere ou deixa de ingerir, devemos prestar atenção em como ela come." Aqui, vale lembrar do tal nariz entupido e de muito mais. 

É coisa do passado pensar que tudo sobre alimentação infantil saudável cabe naquela receita de papinha com ingredientes "obrigatórios" (entre aspas mesmo!) que o pediatra sacava da gaveta ou mandava imprimir para entregar à mãe do paciente-mirim. O verbo "alimentar-se" não é tão fácil de conjugar, nem pode ser traduzido em uma lista de compras.

Até porque, por falar em hábitos saudáveis, o ideal seria que o pequeno fizesse mais refeições ao lado dos pais, irmãos… Mas, na vida como ela é, a família brasileira só se alimenta junto duas vezes por semana. Atenção: duas vezes não são dois dias, mas um par de refeições, entendeu? Permanece o hábito de servir o almoço ou o jantar da meninada à parte — em outra mesa, em outra hora, às vezes em outro cômodo. O mais comum mesmo é cada morador da casa comer em um horário diferente. 

"Aliás, pouco adianta comer junto se o clima não for legal", sempre observa Fisberg.  As pessoas insistem em jogar à mesa  suas irritações do dia. O pai (ou a mãe) aproveita aqueles instantes para dar a bronca no filho por algo que ele fez  e a criança fica entre o pito e as garfadas.

Ou seja, as dificuldades alimentares muitas vezes não nascem no prato, nem no aparelho digestivo (olha o exemplo do nariz entupido). Elas podem ter mais  a ver com o entorno.

Entre a turminha com dificuldade alimentar está a meninada seletiva, aquela que, por exemplo, fecha a boca para alimentos de determinadas cores. Vade retro, tudo o que é laranja, e afasta-te, cenoura, levando para bem longe a abóbora e o damasco. Ou, às vezes, o seletivo que não engole nadica que tenha certos sabores ou texturas ou, ainda, consistências. É o bebê que cuspia a papinha e que, depois, recusa o purê de batata. 

Existem ainda os sensoriais intensos, aqueles sujeitos que têm os sentidos tremendamente aguçados. Aí cismam em gostar de uma marca de produto e ai se, em certo dia, ela não é encontrada no supermercado! Nanani-ná-não, eles não aceitam trocas.

Convenhamos: manias na hora comer quase todo mundo tem. O desespero dos pais é que tende a ser exagerado. Só é preciso ir à luta pelo seletivo quando, em função dessas manias, ele exclui das possibilidades de cardápio um grupo inteiro de nutrientes.

Outra velha queixa é a do baixo apetite. Mas, lembre-se, qualquer um de nós, quando não nos sentimos bem, comemos menos. Por que a pobre criança não teria esse direito? Um erro é dar estimulantes— que, quando funcionam, não têm efeito superior a uns sete dias.

Pior roubada é forçar. Se o filho vomitar depois de alguns aviõezinhos  aterrissando na marra em sua boca, saiba: provavelmente você dançou. Isso pode gerar trauma e ser o gatilho de mais dificuldades alimentares.  O que, pelo mesmo motivo, pode ocorrer com a criança que um dia precisou ficar internada e usou sonda. Não raro, ela se torna uma criaturinha difícil de lidar nas refeições.

Mauro Fisberg também me chamou a atenção para a quantidade: quem foi que disse que o menino precisa mamar 300 mililitros de leite?! O tamanho da mamadeira que você comprou? "Ninguém sabe se o apetite de um bebê comporta os 300  ou 190 mililitros. Nem nós, os pediatras", avisa o médico.

Há uma porção farta de hábitos que dificultam. Um deles é levar aparelhinhos com telas para a mesa. Quem nunca entregou um desses para o filho durante a refeição? Ah, você não, entendo… Mas nunca ligou o seu também, certo? Nunca, nunca, nunca respondeu um WhatsApp entre as mordiscadas, nem bisbilhotou a timeline ao esperar a sobremesa? Jamais leu este blog diante de um prato? É o tal do exemplo. Que igualmente vale para pais que gostariam que os filhos comessem verdura, mas  que nunca pedem, eles próprios, uma salada.

Variar as preparações também é importante. Alguns podem não comer couve crua, mas adorar couve refogada etecétera. Em geral, o sinal amarelo pisca pra valer quando o médico pergunta quantas preparações a criança costuma comer no dia a dia  e a lista fica em torno de umas 20 receitas. Ovo mexido, cozido, estalado, frito — cada um equivaleria a uma preparação, para ter uma ideia.

Só não se desgaste no outro extremo, tentando variar demais o cardápio: a criançada pequena gosta de um repeteco porque, assim, ela se sente até mais segura. Tanto que fica vendo o mesmo desenho animado quatrocentas vezes e pede para você lhe contar a historinha de todas as noites antes de dormir. A única coisa que não deveria ter bis é a tensão em torno de um momento que deveria ser gostoso. É preciso mais calma, porções maiores de presença e bons bocados de alegria na hora de comer. Receita que agradaria paladares de todas as idades.

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Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.