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Blog da Lúcia Helena

O marcador que poderá denunciar o câncer de bexiga no velho exame de urina

Lúcia Helena

04/05/2018 03h53

Crédito: iStock

Dizer que quanto mais cedo alguém flagra um câncer, tanto melhor, é o mesmo que falar que chuva molha. E ponto. Mas, se o assunto é o tumor de bexiga, vale eu correr o risco de soar um bocado óbvia. Pois, quando a lesão maligna surge, 1 milímetro a mais que ela cresça –ora, só 1 milímetro vagabundo de nada– pode ser caso de vida ou morte.

Explico. As células cancerosas em geral aparecem no urotélio, a camada interna da bexiga, a bolsa que pode armazenar de 300 a 500 mililitros de urina produzida pelos rins até o momento de (ah, que alívio…) despejá-la pelo canal da uretra, na direção de saída. Se o tumor cresce, elas mergulham na segunda camada do órgão, que é formada por músculo. A fronteira pode ter 1 milímetro, entende? Daí é um pulinho para alcançarem a camada externa e ganharem o mundo. Digo, o seu corpo. 

A mortalidade por câncer de bexiga fica entre 1% e 3% quando a doença ainda está confinada no urotélio. É baixa. E mais: nesse ponto, o tumor pode ser literalmente raspado fora. Mas tudo muda e o risco de morrer, no período de um ano a três anos, salta para 80% –se a doença já invadiu a camada muscular. 

Daí ter chamado a atenção o trabalho recém-publicado na Nature Scientific Reports, que identificou marcadores do câncer de bexiga na urina. Um marcador seria uma espécie de rastro molecular deixado pelas células cancerosas.

E adianto por que isso faz rufar os tambores na comunidade científica: até hoje não existe um exame para detectar de maneira conclusiva a doença que não seja a cistoscopia, método em que o médico observa o interior da bexiga introduzindo uma câmera pela uretra.

Não é exatamente a situação mais confortável do mundo para o paciente. Nem o teste mais simples, fácil e barato. Portanto, nenhum médico pede de cara uma cistoscopia  –mesmo se ele vê que o sujeito fuma, por exemplo. O cigarro é, disparado, o maior fator de risco para esse tipo de tumor. Entenda, então, a empolgação dos cientistas diante da possibilidade de rastrear esse câncer com um simples exame de urina.

O trabalho que apontou os marcadores do câncer de bexiga foi liderado pelo professor Lars Erichsen, da Universidade de Düsseldorf, na Alemanha, com cientistas de diversos outros países, como Suíça, Estados Unidos, França, Espanha e…sim, Brasil. O autor brasileiro, com quem conversei longamente para o blog, é o urologista Marcelo Luiz Bendhack, professor da Universidade Positivo, em Curitiba, no Paraná, e presidente da Sociedade Latino-Americana de Uro-Oncologia.

Bendhack conta que ainda será necessário investigar o uso dos marcadores em testes com um número maior de amostras. "Mas as perspectivas são bastante favoráveis", diz ele. O médico se dedica à busca dessas moléculas dedo-duros do câncer desde que fez doutorado na mesma Universidade de Düsseldorf, entre 1994 e 1998, na época focando o tumor de próstata.

"Encontrar exames que sejam simples é fundamental, ainda mais no caso da bexiga", ele me disse e deu várias justificativas. A lesão maligna na bexiga, bem no começo, não tem sintomas. O que pode acontecer, um pouco mais adiante, é a pessoa perder sangue pela urina, mas ela nem sempre nota. E, se nota, esse sangue pode significar uma série de outras coisas.

Alguns indivíduos, com o tempo,  passam a sentir um incômodo na hora de fazer xixi, parecido com o ardor chato de uma cistite. Enfim, demora a cair a ficha de todos. Fato: o médico não sai pedindo uma cistoscopia de bate-e-pronto. Afinal, pelas aparências, nem tem por quê.

"Tem outra coisa: mesmo que a pessoa detecte o problema cedo, depois da raspagem, o câncer inicial tende a voltar", lembra o professor Bendhack. Mais essa! O tumor de bexiga é uma assombração difícil de exorcizar. Há reincidências entre 30 e 70% dos casos –que, aproveitando, acometem três vezes mais homens do que mulheres. Os oncologistas sabem disso. Por esse motivo, vivem solicitando, a cada três meses no início e a cada seis meses depois de um tempo, que o paciente repita a cistoscopia. Às vezes, os repetecos desse exame acontecem por oito, dez anos, conforme o tumor vai e volta.

Pronto: cada cistoscopia representa um dia afastado do trabalho, custos do procedimento, incômodo durante e depois, um pequeno risco de infecção… Só que, se isso não for feito e alguém marcar bobeira, existe o perigo de perder a bexiga inteira para se safar de um destino cruel, substituindo-a por uma bolsa que os cirurgiões constroem usando um pedaço do intestino. A falsa bexiga resolve muita coisa, como me descreveu Bendhack, mas está longe de ser perfeita –"Às vezes, não se esvazia direito, às vezes fica laceada com o tempo".

O professor conta que o uso de marcadores também servirá para orientar os médicos, no sentido de não prescrever outros tratamentos, pós-cirúrgicos, como encher a bexiga com a vacina BCG ou apelar para a químio, se não houver bom motivo — leia, se não for encontrado o  rastro molecular de um tumor na urina.  Na Europa já se testam os marcadores inclusive no tratamento, conduzindo até a lesão, por afinidade, substâncias capazes de destruí-lo.

Enquanto isso não vira realidade no dia a dia, vale eu recomendar que você fique bem distante do cigarro, do cachimbo, do charuto… O recado é também para fumantes passivos. As substâncias tragadas inexoravelmente  vão parar na urina e, uma vez ali, irritam além da conta o revestimento da bexiga. Infelizmente, pedir para alguém deixar de fumar, muitas vezes, é como pedir para a chuva parar de molhar. Mas, se o assunto é saúde , vale o risco de eu soar –pela segunda vez em um texto só– um bocado óbvia. 

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.