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Blog da Lúcia Helena

Pomada de urucum fecha feridas mais depressa do que outros cicatrizantes

Lúcia Helena

10/05/2018 04h00

Crédito: iStock

Este é um causo mineiro. É sobre o casamento da sabedoria popular com a ciência. O noivado foi longo, ó, pr'ocê ver: dezessete anos devotados a pesquisas até surgir, em 2016, uma pomada com o poder de fechar rapidim, bem mais ligeiro do que outros cicatrizantes no mercado, ferimentos de queimaduras e de pés diabéticos, escaras de quem fica muito tempo acamado e  lesões que aparecem na pele com psoríase ou de alguém que fez um peeling a laser. Só agora, porém, o extrato de urucum, que é a base de tudo, começa a ser exportado para a Austrália. E, logo mais, a pomada será encontrada na Itália, na Arábia Saudita e no Senegal.

Tudo começou em 1999 , quando o mecânico Aloísio José Reis machucou as mãos enquanto trabalhava em sua oficina. Aqui valem parênteses: Aloísio era conhecido em Viçosa, no interior de Minas Gerais, por ser um inventor nas horas vagas. Entre um conserto da rebimboca da parafuseta e outro, no mínimo inventava moda: por exemplo, ele testava extratos vegetais capazes de deixar a madeira usada nos lápis mais forte, apta a enfrentar o torneador da indústria sem se arrebentar e provocar desperdício.  E o extrato que se derramou sem querer sobre as mãos machucadas foi — uai! — o de urucum.

A dor, então, arredou pra lá quase que por encanto. Os ferimentos, após poucos dias, desapareceram sem deixar marcas. Isso já deixou mecânico-inventor esperto. Dias depois, foi a vez de um funcionário da oficina se queimar com um escapamento. E pronto: Aloísio lhe trouxe o extrato dourado intenso que parecia uma coisa de louco. Não, meninos, não façam isso em casa, porque ali deu certo, mas poderia não ter dado… 

O fato é que o ardor da pele queimada sumiu em minutos. Porque, adianto, o extrato do urucum tem uma ação analgésica impressionante. Não surgiram novas bolhas. E — aconteceu de novo! —  a lesão  queimadura pareceu se curar em velocidade recorde, num tirím .

Intrigado, Aloísio foi procurar quem poderia decifrar o que estava se passando. Contou a história toda ao professor Paulo César Stringheta que, doutor em ciências dos alimentos, ainda hoje chefia o Departamento de Corantes Naturais e Bioativos da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Para ele, afinal, o urucuzeiro (Bixa orellana) não era novidade — se bem que aquele efeito cicatrizante, sim.

Originário da América tropical, provavelmente da região do Peru, esse arbusto que nasce em quase todo o Brasil tem um fruto que mais lembra um ouriço vermelho. Dentro dele, escondem-se dezenas de sementes rubras, das quais se extrai um pigmento forte, usado pelos índios para pintar o corpo. 

O mesmo pigmento frequenta as cozinhas brasileiras — é o famoso colorau. E é também o corante natural mais utilizado pela indústria de alimentos em todo o planeta, emprestando um tom alaranjado a iogurtes, massas, salgadinhos… "Mas a ação cicatrizante não tem a ver com o pigmento isolado, feito a partir da película que reveste as sementes", explica o professor Stringheta. "Ela vem de umas 100 substâncias guardadas no interior de cada uma delas."

Segundo Stringheta, o extrato reúne compostos fenólicos, terpenos e mais uma série de bioativos que agem em sinergia na pele machucada: juntos, afastam micróbios que contaminariam os ferimentos. Aliviam a dor, como já foi mencionado. Diminuem à beça a inflamação local. E eis a chave para o sucesso:  promovem uma vascularização onde o extrato é aplicado, dando as condições para que a própria circulação leve ao local lesionado as substâncias encarregadas de reparar os tecidos.

 "Outros cicatrizantes também são ótimos anti-inflamatórios. Só que, além de oferecerem os efeitos adversos dos corticoides, presentes em muitos deles, não estimulam a circulação na área machucada, como faz o extrato de urucum", diz o pesquisador. Para ele, isso explicaria por que, nas experiências realizadas na UFV, comparando a pomada de urucum com duas formulações cicatrizantes bastante prescritas pelos médicos para escaras, por exemplo, quem usou a primeira se livrou das feridas de vez, enquanto elas voltaram com relativa frequência em quem aplicou os outros cremes.

Não dá para dizer se a responsabilidade pelos bons efeitos sentidos na pele vem das substâncias predominantes no extrato ou de algumas outras, encontradas em quantidades ínfimas. O segredo é extrair do urucum todos os seus componentes, sem deixar nada para trás. Para isso é preciso uma paciência mineira. São vinte dias cravados. Se pular um passo para acelerar o processo, o extrato perderá a eficácia.

A tecnologia brasileira, patenteada em 2010  — depois de o extrato ser testado em animais e em pacientes —,  não usa nem sequer um  solvente.  É urucum puro, puro… E a pomada é 100% natural, feita só com esse extrato e vaselina.

Stringheta e Aloísio Reis, hoje formado em engenharia de produção, se tornaram sócios do Laboratório Profitus, que só surgiu porque a própria UFV tem uma incubadora de empresas de base tecnológica que é exemplar. Mesmo assim, por falta de recursos, a pomada continuou na gaveta por um tempão. Quando muito, era distribuída de graça a quem a procurava, produzida pelos dois sócios por conta própria. Pois, na cidade de Viçosa, o poder cicatrizante do urucum fez a fama. Só há dois anos, com a chegada dos primeiros investidores, o produto pousou em algumas cidades brasileiras. Mas agora, finalmente, a pomada de urucum sai de Minas para ganhar espaço nas caixinhas de primeiros socorros desse mundão. 

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.