Pomada de urucum fecha feridas mais depressa do que outros cicatrizantes
Este é um causo mineiro. É sobre o casamento da sabedoria popular com a ciência. O noivado foi longo, ó, pr'ocê ver: dezessete anos devotados a pesquisas até surgir, em 2016, uma pomada com o poder de fechar rapidim, bem mais ligeiro do que outros cicatrizantes no mercado, ferimentos de queimaduras e de pés diabéticos, escaras de quem fica muito tempo acamado e lesões que aparecem na pele com psoríase ou de alguém que fez um peeling a laser. Só agora, porém, o extrato de urucum, que é a base de tudo, começa a ser exportado para a Austrália. E, logo mais, a pomada será encontrada na Itália, na Arábia Saudita e no Senegal.
Tudo começou em 1999 , quando o mecânico Aloísio José Reis machucou as mãos enquanto trabalhava em sua oficina. Aqui valem parênteses: Aloísio era conhecido em Viçosa, no interior de Minas Gerais, por ser um inventor nas horas vagas. Entre um conserto da rebimboca da parafuseta e outro, no mínimo inventava moda: por exemplo, ele testava extratos vegetais capazes de deixar a madeira usada nos lápis mais forte, apta a enfrentar o torneador da indústria sem se arrebentar e provocar desperdício. E o extrato que se derramou sem querer sobre as mãos machucadas foi — uai! — o de urucum.
A dor, então, arredou pra lá quase que por encanto. Os ferimentos, após poucos dias, desapareceram sem deixar marcas. Isso já deixou mecânico-inventor esperto. Dias depois, foi a vez de um funcionário da oficina se queimar com um escapamento. E pronto: Aloísio lhe trouxe o extrato dourado intenso que parecia uma coisa de louco. Não, meninos, não façam isso em casa, porque ali deu certo, mas poderia não ter dado…
O fato é que o ardor da pele queimada sumiu em minutos. Porque, adianto, o extrato do urucum tem uma ação analgésica impressionante. Não surgiram novas bolhas. E — aconteceu de novo! — a lesão queimadura pareceu se curar em velocidade recorde, num tirím .
Intrigado, Aloísio foi procurar quem poderia decifrar o que estava se passando. Contou a história toda ao professor Paulo César Stringheta que, doutor em ciências dos alimentos, ainda hoje chefia o Departamento de Corantes Naturais e Bioativos da Universidade Federal de Viçosa (UFV). Para ele, afinal, o urucuzeiro (Bixa orellana) não era novidade — se bem que aquele efeito cicatrizante, sim.
Originário da América tropical, provavelmente da região do Peru, esse arbusto que nasce em quase todo o Brasil tem um fruto que mais lembra um ouriço vermelho. Dentro dele, escondem-se dezenas de sementes rubras, das quais se extrai um pigmento forte, usado pelos índios para pintar o corpo.
O mesmo pigmento frequenta as cozinhas brasileiras — é o famoso colorau. E é também o corante natural mais utilizado pela indústria de alimentos em todo o planeta, emprestando um tom alaranjado a iogurtes, massas, salgadinhos… "Mas a ação cicatrizante não tem a ver com o pigmento isolado, feito a partir da película que reveste as sementes", explica o professor Stringheta. "Ela vem de umas 100 substâncias guardadas no interior de cada uma delas."
Segundo Stringheta, o extrato reúne compostos fenólicos, terpenos e mais uma série de bioativos que agem em sinergia na pele machucada: juntos, afastam micróbios que contaminariam os ferimentos. Aliviam a dor, como já foi mencionado. Diminuem à beça a inflamação local. E eis a chave para o sucesso: promovem uma vascularização onde o extrato é aplicado, dando as condições para que a própria circulação leve ao local lesionado as substâncias encarregadas de reparar os tecidos.
"Outros cicatrizantes também são ótimos anti-inflamatórios. Só que, além de oferecerem os efeitos adversos dos corticoides, presentes em muitos deles, não estimulam a circulação na área machucada, como faz o extrato de urucum", diz o pesquisador. Para ele, isso explicaria por que, nas experiências realizadas na UFV, comparando a pomada de urucum com duas formulações cicatrizantes bastante prescritas pelos médicos para escaras, por exemplo, quem usou a primeira se livrou das feridas de vez, enquanto elas voltaram com relativa frequência em quem aplicou os outros cremes.
Não dá para dizer se a responsabilidade pelos bons efeitos sentidos na pele vem das substâncias predominantes no extrato ou de algumas outras, encontradas em quantidades ínfimas. O segredo é extrair do urucum todos os seus componentes, sem deixar nada para trás. Para isso é preciso uma paciência mineira. São vinte dias cravados. Se pular um passo para acelerar o processo, o extrato perderá a eficácia.
A tecnologia brasileira, patenteada em 2010 — depois de o extrato ser testado em animais e em pacientes —, não usa nem sequer um solvente. É urucum puro, puro… E a pomada é 100% natural, feita só com esse extrato e vaselina.
Stringheta e Aloísio Reis, hoje formado em engenharia de produção, se tornaram sócios do Laboratório Profitus, que só surgiu porque a própria UFV tem uma incubadora de empresas de base tecnológica que é exemplar. Mesmo assim, por falta de recursos, a pomada continuou na gaveta por um tempão. Quando muito, era distribuída de graça a quem a procurava, produzida pelos dois sócios por conta própria. Pois, na cidade de Viçosa, o poder cicatrizante do urucum fez a fama. Só há dois anos, com a chegada dos primeiros investidores, o produto pousou em algumas cidades brasileiras. Mas agora, finalmente, a pomada de urucum sai de Minas para ganhar espaço nas caixinhas de primeiros socorros desse mundão.
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