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Blog da Lúcia Helena

Doar leite humano é tão vital quanto doar sangue. Até a mulher sai ganhando

Lúcia Helena

22/05/2018 04h00

Crédito: iStock

Chega o frio e a quantidade de litros captados na rede de bancos de leite humano (BLH) no estado de São Paulo despenca uns 30%. A situação é parecida em outras regiões do país — em parte pelo desconforto de despir os seios no ar mais gélido, em parte porque muitas doadoras viajam de férias no auge da estação.

Cada gota de doação perdida faz uma tremenda falta. Você está achando que é figura de linguagem?  Não é, não: um prematuro, quando começa a se alimentar, carece de ínfimo 1 mililitro de leite humano a cada três horas. Essa dieta minimalista multiplica as chances de seu organismo completar o amadurecimento interrompido no útero de forma brusca, evitando, lógico, sequelas. E ainda afasta infecções, antecipando a alta. 

"Um único frasco doado pode suprir uma UTI neonatal inteira ao longo de um dia", conta a pediatra Andréa Penha Spínola Fernandes que, desde 2011, é quem coordena o banco de leite da maternidade Leonor Mendes de Barros, a referência para todas as unidades da Grande São Paulo.

O Brasil sabe guardar esse tesouro, o leite humano, como nenhum outro país. Dos 292 bancos existentes ao redor do globo, 72,9% estão aqui. Só no estado de São Paulo, espalham-se 59 deles e mais 38 postos de coleta. É pra encher o peito: agora, a Organização Mundial de Saúde  recomenda que todos sigam o nosso exemplo. Ufa, penso eu, não somos só reconhecidos por quem mama nas tetas da corrupção…

Qualquer mulher amamentando que esteja saudável pode virar doadora. E ela nem precisa sair de casa: na maior parte das cidades brasileiras, a coleta é domiciliar. O cadastro  é pá-pum, desde que a carteira do pré-natal esteja em mãos para provar que não há uma infecção. A alternativa é apresentar exames realizados há menos de seis meses.

Divido o que aprendi com Andréa Spínola sobre o passo a passo da doação:

  • Leite humano não pode ser guardado em plástico. Só a tampa, daquelas de rosquear, é que deve ser desse material (metal jamais!). O pote de armazenamento precisa ser de vidro. O mais usado é o de uma famosa marca de café solúvel.
  • Antes de tudo, o recipiente é esterilizado. Como? Jogo fácil. Primeiro, bastante água e sabão. Depois, basta mergulhar o vidro e a tampa na panela cheia de água limpa e esperar que ferva para cronometrar 15 minutos.
  • O certo é deixar secar naturalmente, sempre com a boca do frasco voltada para baixo sobre um pano limpo.
  • A extração pode ser tanto a manual quanto a mecânica. Mas atenção! Quem for usar uma máquina deve esterilizá-la também, igualzinho fez com o vidro. E é para jogar fora aqueles extratores de borracha que lembram uma pêra ou uma bomba. "Ninguém consegue esterilizar aquilo direito", justifica Andréa Spínola.
  • Fundamental escolher um lugar calmo e limpinho. Não dá para tirar o leite no banheiro ou na cozinha, por onde transitam mais germes.
  • O certo é enrolar os cabelos com um lenço ou usar touca. E também cobrir com  pano limpo ou máscara descartável o nariz e a boca, lavar bem as mãos, o bico dos seios e…
  • …desprezar os três ou quatro primeiros jatos. Pura precaução.
  • A coleta inicial pode ir direto para o frasco, que deve ser bem fechado. Cola-se, então, uma etiqueta com a data dessa primeira vez, para acompanhar o prazo de validade.
  • Ah, sim, o leite humano congelado dura 15 dias. Deve-se agendar a sua retirada para cinco dias antes desse tempo se esgotar. E, nesse intervalo, nada de desperdício, por favor.
  • Nas coletas seguintes, o leite extraído será coletado em um copo de vidro, esterilizado do mesmo jeito. E, dali,  será derramado no frasco que, na sequência, retornará ao freezer.

Ninguém deve encucar se não conseguir enchê-lo. Qualquer volume doado rende boas mamadas.  Uma vez  no banco, o frasco passará por uma bela checagem — se trincou, por exemplo, será descartado. Rastro de sujeira detectado por testes químicos e físicos? Idem. Claro, o próprio leite enfrenta uma batelada de provas, inclusive para avaliar sua acidez e  o teor de gorduras. É aquecido a 62,5 graus Celsius e pasteurizado, antes de se submeter à cultura para flagrar uma eventual bactéria intrusa. A segurança é máxima para proteger milhares de crianças.

Só no  Sudeste do país, 12% dos bebês nascem bem antes da hora, algo perto de 72 mil prematuros por ano. Daí que, por mais que o número de doadoras venha aumentando, os bancos de leite atendem somente cerca de 60% da demanda.

Na opinião de Andréa Spinola, isso acontece até porque muitas recém-mães desconhecem essa possibilidade. "Pena, porque doar leite as ajudaria indiretamente a amamentar o próprio filho", raciocina. Faz sentido: ora, se a mulher produz um pouco de leite a mais, esse líquido não pode ficar parado, sob pena de entupir os ductos pelos quais escoaria. No mínimo, isso dificulta dolorosamente as mamadas. E pode ser o estopim para mastites e infecções que fazem a criatura desistir de dar de mamar.

Quando isso acontece, é sempre uma dó. Para a criança, o impacto positivo do aleitamento vai além da idade das fraldas: quem mamou no peito corre um risco bem menor de desenvolver leucemia, alergias de toda espécie e doenças respiratórias na infância. Quando vira gente grande, costuma apresentar um QI mais elevado e é mais difícil que torne obeso, diabético ou hipertenso.  Tudo isso segundo uma série de revisões sobre o aleitamento materno publicada na revista científica The Lancet. Não é pouca coisa.

O efeito a longo prazo também vale para as mulheres. Quanto maior o período do aleitamento — e a doação do excedente de leite ajuda a esticar essa temporada — , menor a ameaça de câncer de mama e de ovários. Também não é pouca coisa.

Se você quer doar ou conhece alguma mulher que esteja amamentando, neste link encontrará onde ficam os bancos de leite por todo o país.  E vale eu lembrar que esses bancos também servem para quem só quer tirar suas dúvidas e descomplicar de vez o aleitamento.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.