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Blog da Lúcia Helena

Glaucoma: metade dos que têm não sabe. E metade dos que sabem não se trata

Lúcia Helena

29/05/2018 04h00

Pessoas negras são grupo de risco para a pressão intraocular alta.  Crédito: iStock

Você só enxerga as letras deste texto porque a luz atravessa uma série de estruturas em seus olhos até alcançar, no fundo do globo ocular, um tapete de células nervosas diretamente conectadas ao nervo óptico. É ele, afinal, que leva as informações de imagens ao cérebro e pronto: oba, você me lê! Faço votos que continue assim, vendo o mundo como ele é. Porque, para mais de 520 mil brasileiros, completamente cegos, é preciso acompanhar este blog em áudio —  e ainda bem que esse recurso existe.

Outros mais de 6 milhões têm baixa visão, uma dificuldade enorme e permanente para enxergar qualquer coisa. Sem contar os 29 milhões que declaram algum perrengue aparentemente mais leve. E olha que esses dados do IBGE são de 2010 (tudo o que temos…). Ou seja, revelam um cenário ultrapassado. Na turma para a qual a visão não anda grande coisa está todo tipo de gente. Inclusive quem verá tudo se apagar aos poucos até não restar fresta de luz. Eu me refiro aos portadores de glaucoma cujo nervo óptico atrofia por bobeira.

Em 2020, serão 80 milhões de indivíduos ao redor do mundo com a doença, que é nitidamente a maior causa de cegueira irreversível aqui e em qualquer canto. Perto de 11 milhões ficarão cegos de vez. "No Brasil, o estudo epidemiológico mais robusto foi realizado na região Sul e, a partir dele e de dados internacionais,  podemos estimar que existam  2 milhões de portadores no país", me disse a oftalmologista Wilma Lelis Barbosa, presidente da Sociedade Brasileira de Glaucoma (SBG). Daria para impedir a doença de cegar. "Mas metade dos pacientes nem sequer suspeita que tem essa condição e muitos não fazem a menor ideia do que se trata", lamenta informar a médica.

Existem mais de 20 formas de glaucoma. O desfecho é sempre o mesmo: o nervo óptico vai para o beleléu e isso não tem volta. O tipo mais frequente, porém, está relacionado à pressão intraocular elevada. No interior dos olhos, há um liquido fluindo sem parar — o humor aquoso. Ele banha e alimenta as estruturas oculares antes de ser escoado por uma espécie de ralo. Como tudo isso acontece dentro de uma bolota fechada, se a produção do tal humor é maior do que a capacidade de escoamento, danou-se. O  grande volume de líquido ali dentro acaba sufocando os vasos de sangue que abasteceriam o nervo e as células  da retina. Assim, eles vão minguando.

Nada disso tem sintoma. E, se um mal não pinica nem arde, não coça nem dói, ele se torna invisível para medidas de prevenção. A cegueira surge insidiosa, pelas laterais. Tão devagar que é como se os olhos se acostumassem com as sombras. O sujeito só se dá conta quando começa a esbarrar em objetos que estavam bem ao seu lado ou, em um estágio avançado, parece ver tudo como se mirasse o final iluminado de um túnel escuro. Daria para prevenir, se as consultas periódicas ao oftamologista não fossem programa adiado. Além de examinar a situação do fundo dos olhos, o médico sempre mede a pressão intraocular. E, uma vez flagrado, o glaucoma pode ficar sob controle.

Quem deveria ficar mais esperto nessa história: primeiro, pessoas com casos da doença na família. Independentemente disso, quem é negro ou descendente de negros. E precisamos lembrar que a vida real não é novela das 9: temos muitos negros e vários de nós, não importa o tom da pele, guardamos genes afro-descendentes no DNA. Portanto, no Brasil mestiço, é pra todo mundo ficar de olho.

Pessoas com grau de miopia moderado ou alto — acima de 6 graus, nem se fala —  também precisam medir a pressão dos olhos todo ano, em especial a partir da quarta década de vida. É que o formato do seu globo ocular, eu diria, não ajuda muito em matéria de proteger o nervo óptico do sufoco.

A idade, aliás, conta à beça. A incidência de glaucoma é de 1,5% em cinquentões, mas vira 7% em quem passou dos 70. Parte disso porque temos o péssimo costume de acumular outros problemas como diabetes e hipertensão. E, embora  pressão arterial, que é a do sangue, seja diferente de pressão intraocular, a do humor aquoso, a doutora Wilma Barbosa conta que um paciente com glaucoma apresenta um risco seis vezes maior de ter um AVC. Mistérios do corpo humano.

Piora tudo quando o sujeito já sofreu traumas nos olhos ou tomou muito corticoide na juventude. Aliás, está aí uma substância danada para fazer subir a pressão intraocular. E tem gente que abusa dela usando, a torto e a direito,  colírios para tirar a vermelhidão dos olhos. Colírio, ainda mais com corticoide, não é gotinha inofensiva.

Por falar nisso, antes de lançar mão de lasers para produzir micro-furos e melhorar a drenagem do globo ocular e antes, também, de realizar cirurgias a fim de criar novos canais de escape para o humor aquoso, os oftalmologistas receitam colírios que diminuem a pressão dentro dos olhos. A questão é:  esses colírios só afastam a  cegueira quando há disciplina. Não adianta pingá-los dia sim, dia não. Nem viver alterando os horários  ou esquecê-los em casa nas férias.  Mas infelizmente , segundo cálculos da SBG, é o que mais se vê por aí: "Metade dos pacientes  diagnosticados negligencia o remédio", conta a doutora Wilma Barbosa.  O sujeito relaxa com um simples colírio e, nessa mancada, o glaucoma joga a sua vida no breu sem fazer alarde. Desfaz a luz.

 

 

 

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.