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Blog da Lúcia Helena

Tem dendê até naquele creme de chocolate com avelã, oxente!

Lúcia Helena

31/05/2018 09h15

Crédito: iStock

 

Eu não queria causar. Mas causei. E duas vezes. Na primeira, na roda de amigos, soltei distraidamente que não gostava de creme de chocolate com avelã. No pão, na panqueca, purinho ou no doce da sobremesa? Passo, obrigada. Pra quê!  Os olhares incrédulos perguntavam: você está de balela? Balela nada, ora. Passo. Fui condenada. Expulsa do time de chocólatras como quem praticava uma falsidade ideológica. Injustamente.

Quando, noutro dia, achei um pote do tal creme na cozinha de casa — porque o paladar não é hereditário — , o rótulo assumia que tinha ali dentro 13% de avelãs (parece mesmo um bocado), 8% de chocolate (miserê, eu queria mais…) e uns outros 8% de leite. Encabeçando a lista dos ingredientes para completar os 100%, lembrando que, nela, sempre aparece primeiro aquilo que entra em maior quantidade, estavam o açúcar e…Ora, ora, ora… Dendê! Sendo precisa, lá está escrito óleo de palma. Aviso: dá na mesma. Triunfante e vingativa, rebati os pseudo-gourmets inquisidores nas redes sociais: com tanto dendê, aquilo era um acarajé se fingindo de chocolate! Causei. Pela segunda vez.

Mas aposto um vatapá, dois abarás e uma moqueca que, na sua despensa, tem mais dendê do que em muito tabuleiro da baiana. "'Óleo de palma é o nome correto, quer dizer, oficial do óleo obtido do dendê", me ensinou o professor Renato Grimaldi, a quem recorri antes que alguém me fritasse por qualquer bobagem. Químico, com mestrado e doutorado em tecnologia de alimentos, há mais de 25 anos ele investiga óleos e gorduras e seu laboratório na Universidade Estadual de Campinas é, sem exagero, referência no assunto no mundo inteiro, fique sabendo você.

Eu me rendo, então, à nomenclatura da ciência, embora minha boca goste mesmo é de um malemolente "dendê", termo que vem do som ainda mais gostosinho, dem-dem, como os africanos chamam essa palmeira originária da costa ocidental de seu continente, cujas sementes chegaram com os escravos.

Câmara Cascudo (1898-1996), historiador que revelou a cultura da nossa cozinha, registrou que "na África, rara seria a iguaria sem o aroma do dendê". E, para matar a fome desesperadora da saudade, o "azeite da cor de ouro velho" — quem dá o tom é a Dona Flor de Jorge Amado — substituiu nos pratos dos negros o azeite de oliva dos portugueses.

Cascudo, porém, morreu dez anos antes de as famigeradas gorduras trans, acusadas de provocar infartos e que tais, começarem a ser retiradas da produção de alimentos industrializados no país. E, diga aí, quem salvou os pães, os bolos prontos, os biscoitos, as margarinas, os sorvetes de massa e os salgadinhos, muitos cremes e pastas de passar na torrada e a própria torrada também? O dendê!  Ops, o óleo de palma, que você deve encontrar no rótulo desses produtos. "Eles são exemplos dos que mais usam esse ingrediente", me disse Grimaldi.

Extraído dos coquinhos do dendezeiro por prensagem, sem nenhum processo químico, o óleo de palma escorre quase vermelho, lotado de vitamina A. Nas altas temperaturas do caldeirão do acarajé, essa vitamina vai para o espaço. Para aproveitar os benefícios desse azeite, o certo seria não levá-lo para o cozimento e derramar um fio só na hora de finalizar a receita para evitar o calor extremo do fogo.

A vitamina e outros componentes também desaparecem depois que o óleo é refinado. Esse é o tipo de processo que some até com a cor solar e o sabor intenso do produto da palma. Aliás, já reparou que seja de soja ou de girassol, de milho ou de canola, todo óleo refinado é de um amarelinho mixuruca e com gosto de… óleo, ué? É desse jeito, pálido e sem cheiro, que fica o óleo de palma usado na indústria.

Na fabricação de alimentos, ele cumpre as funções que eram das trans, capazes de prejudicar demais a saúde — também conhecidas por gorduras hidrogenadas ou, ainda, modificadas. Hoje existem mais alternativas, mas de longe o óleo de palma é o mais utilizado pelo setor. Indonésia e Malásia são responsáveis por 85% da produção mundial.

O óleo de palma está em muitos produtos justamente porque é formado 50% por ácidos graxos insaturados e outros 50% por saturados. Opa, saturados feito a gordura animal, que também podem encrencar as artérias?!  Muita calma nessa hora: com moderação, não há mal algum. Para ter um parâmetro, a manteiga de cacau, ingrediente dos melhores chocolates, até mesmo dos orgânicos, chega a ter 60% de gorduras saturadas e você não foge de um bombom como o diabo corre da cruz.  "Todos esses produtos com  óleo de palma são bons desde que não sejam consumidos em excesso no dia a dia. São para momentos de indulgência", pondera Grimaldi.

Antes que deduza, equivocadamente, que então os cremes de chocolate têm óleo palma em vez de manteiga de cacau só para poupar os nossos corações de uns 10% de insaturadas a mais, aviso que não é nada disso. O motivo é a consistência. Se fosse feito de manteiga de cacau, justamente por esses 10% a mais, o seu creme preferido — ó, você que me acusou! — seria duro feito um tablete de gianduia. Teria de usar a faca para cortá-lo em vez de esparramá-lo no pão. A cremosidade na medida é obra do óleo de palma.

São justamente as gorduras saturadas que dão mais ou menos firmeza. Sem elas — se fossem feitos de um óleo insaturado, mais amigo do peito — , os recheios seriam líquidos e as bolachas deslizariam umas sobre as outras. O panetone escorreria gordura nas mãos do Papai Noel feito um pastel, assim como vários pães de forma e bisnaguinhas engordurariam as suas na hora do lanche. A bola de sorvete? Nunca se formaria. O bolo ficaria solado. E por aí vai. É o óleo de palma, por causa da sua metade saturada, que dá a consistência certa.

Tem mais. O óleo do dendezeiro proporciona estabilidade a qualquer produto, estendendo a sua validade. E, de novo, pelo seu teor de gorduras saturadas, que são por natureza bem mais resistentes à oxidação do que um ômega 3 ou outra gordura toda insaturada, por exemplo. Fazendo um dengo nas minhas origens soteropolitanas, diria que sem uma baianidade, sem óleo de palma (ou dendê), aquela batatinha que você pretende beliscar nos jogos da Copa não chegaria à estreia do Brasil. Antes mesmo de Neymar pisar no gramado, estaria rançosa.

 

 

 

 

 

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.