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Blog da Lúcia Helena

Use o fio dental se quer evitar infarto, câncer, parto prematuro…

Lúcia Helena

05/06/2018 04h00

Crédito: iStock

Não sei de onde veio a ideia de que todos os problemas na boca morrem por lá mesmo. Quando a encrenca é nas gengivas, aí mesmo é que a boca é só o começo. O fim pode ser um belo piripaque no coração,  uma doença pulmonar grave, um bebê nascendo antes da hora e com baixo peso…

O assunto é tão sério que você pode dar um sorriso amarelo se capricha na higiene bucal apenas depois de comer uma pizza de alho com o seu amor ou para espantar aquele bafo de onça matinal. Aí o fedor é porque a produção de saliva despenca na madrugada e ela, em princípio, lavaria as células mortas, as bactérias moribundas e os excrementos desses micro-organismos que, afinal, se banquetearam com restos de comida apodrecendo noite afora.

Sua boca é residência de bilhões de micróbios que seguem à risca o princípio do crescer e multiplicar. "Bastam doze horas após a escovação e o uso do fio dental para que a população bacteriana fique numerosa como antes", avisa o periodontista Giuseppe Romito, professor da Universidade de São Paulo. De 12 em 12 horas, feitas as contas,  é sinal de que a higiene bucal deve ser repetida, no mínimo, duas vezes ao dia. E não pode ser considerada uma faxina completa sem o bendito fio. "Sem ele, a limpeza é realizada pela metade", diz o professor. Pronto: está aí o verdadeiro sentido do meia-boca!

A primeira reação à sujeira é uma inflamação, a tal da gengivite. Ah, nem finja que não é com você… Ou, então, que sorte a sua! Pois mais de 90% dos brasileiros têm o problema. "'É que, tecnicamente, basta um único ponto sangrando para eu afirmar que aquela pessoa tem gengivite", ouvi do professor Romito.  E aí, quem nunca?!

Pior é quando a inflamação alcança a área de sustentação dos dentes, o periodonto.  Pois 25% dos brasileiros têm periodontite, sendo que de 7% a 10% ficarão completamente banguelas. Os dentes, sem esse apoio, balançam até cair."Não é pouca gente', observa Romito. Não mesmo, digo eu.

E a preocupação não deveria ser só dos dentistas: as bactérias que proliferam em brechas, como aquelas entre os dentes e as gengivas, onde só o bendito fiozinho se enfia intrometido, representam um perigo à distância. Fácil entender…

Se você pudesse esticar uma gengiva inflamada, ela equivaleria à área da palma da mão de um adulto. Ora, ninguém deixaria uma ferida desse tamanhão nas costas sem ficar limpando a todo instante. Mas na boca… Como em um machucado, existem micro-ulcerações, feito portas de entrada para as bactérias se espalharem.

No coração, se a pessoa já está debilitada, provocam uma endocardite, inflamando o próprio músculo cardíaco. É caso de vida ou morte e a relação com a boca encardida é direta. Mais comum, porém, é a gengiva doente derramar na circulação uma série de substâncias inflamatórias. Elas, no caso, agem indiretamente.

Nas artérias, as substâncias lançadas pelas gengivas sangrentas facilitam o rompimento de placas que, de novo, podem parar no coração e, ali, entupirem um vaso. É o infarto. Claro — como faz questão de ponderar Giuseppe Romito —, fatores como o colesterol alto e  hipertensão são ainda mais importantes nesse contexto. Mas que a inflamação da gengiva dá o seu empurrãozinho, ah, ela dá. E, às vezes, é o que basta.

Nessa linha, a Academia Americana de Periodontia fez um levantamento e constatou: pacientes internados com pneumonia e outras doenças pulmonares tendem a apresentar quadros mais graves quando têm gengivas descuidadas. A mesma academia já associou as inflamações gengivais com tumores de faringe e de laringe, alegando que elas favorecem mutações nas mucosas desses órgãos.

Uma série de trabalhos apontam que as toxinas das bactérias bucais em desequilíbrio afetam a placenta das grávidas, prejudicando o desenvolvimento do bebê. E o corpo da mãe costuma reagir antecipando o parto. Opa, aqui vale um bom alerta: mulheres são o sexo frágil em matéria de gengivas, que são sensíveis às mudanças hormonais na puberdade, no período menstrual, na menopausa e, principalmente, na gravidez. Olhe para isto: não há trégua para a mulherada!

Os diabéticos também penam. O excesso de glicose em circulação facilita a proliferação das bactérias que inflamam as gengivas. "Na contrapartida, gengivas inflamadas — e, de novo, por causa das substâncias que liberam —  pioram a resistência à insulina", diz Giuseppe Romito.

Apesar disso, o consumo de fio dental, no Brasil, não aumenta nem sequer 1 centímetro faz tempo. Pouco mais da metade população compra uma unidade por ano — e isso segundo o Datafolha. Nem sequer 20% passam o fio todo dia. "E, se a gente checar, só uns 10% sabem passar direito" apostou comigo Romito.

Vamos lá. Corte um pedaço de 40 a 50 centímetros, enrole as pontas nos dedos e vá passado o fio em cada intervalo entre os dentes, sem dar a missão por encerrada quando terminar os da frente, ok? Ao se aproximar da gengiva, faça movimentos de vai e vem de cada lado, duas vezes no mínimo. Sujou? Deslize e use um pedaço limpo para seguir. Na dúvida,  peça aulinha para o seu dentista, porque até seu coração sairá sorrindo . Foi um trocadilho triste, eu sei. Mas triste mesmo é uma boca suja.

Pra terminar, fui tirar uma velha história a limpo. No ano retrasado, o Dietary Guideline for Americans, uma espécie de manual de políticas públicas da saúde americana, deu ao fio dental  o status de supérfluo. O documento foi criticado no mundo inteiro. O professor Romito explica: "por questões de norma, esse guia só pode indicar como necessário para a saúde aquilo que passou  por estudos clínicos randomizados. E, a rigor, nunca ninguém estudou o fio dental desse jeito".

Traduzo: seria preciso comparar dois grupos enormes de pessoas, escolhidas aleatoriamente. Um grupo usaria fio dental por um tempo considerável. Outro grupo ficaria longe do fio pelo mesmo período. Para daí provar que as gengivas de quem lançou mão do fio seriam mais limpinhas. Faz sentido? Bem, pelos mesmos critérios, o papel higiênico também seria considerado supérfluo. E eu espero que você use os dois.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.