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Blog da Lúcia Helena

Tão comum e desconhecida: a enxaqueca nunca foi sinônimo de dor de cabeça

Lúcia Helena

26/06/2018 04h00

Crédito: iStock

Para que você entenda, de cara, o meu ponto: dizer que a enxaqueca é uma dor de cabeça forte é o mesmo que afirmar que a gravidez é uma barriga grande. O ventre volumoso da mulher que espera um bebê pode até ser o que mais se nota, mas não resume tudo o que está acontecendo ali dentro. Assim como o latejar na testa é apenas parte de um fenômeno muito maior que ocorre no cérebro de um enxaquecoso.

Tem mais: uma barriga estufada poderia ser até excesso de gordura, do mesmo modo que uma dor de cabeça, isolada, poderia ser qualquer um dos variados tipos de cefaleia. Mas 15 em cada 100 brasileiros sabem que o tormento da enxaqueca é único. E começa antes de explodir os miolos.

O prenúncio dura até um dia inteiro e seus sinais não dizem muita coisa. Existem pessoas que experimentam uma incrível euforia — elas se sentem elétricas e energizadas, cheias de ânimo para o que der e vier. A sensibilidade à luz também pode dar as caras. E é possível que surja um desejo incontrolável de comer, especialmente doces.

Vale ponderar até que ponto aquele pedaço de chocolate — um dos gatilhos mais alardeados do problema — teria culpa pelo mal-estar ou entraria na história de gaiato, só porque a pessoa, bem no comecinho da crise, sentiu fissura por um bombom. Difícil saber… Assustador na hora agá é perder a força em um lado do corpo. É, pode acontecer também.

Em 30 por cento dos episódios, há um anúncio claro de que a enxaqueca está chegando com tudo: um período de aura, que na maioria das vezes nem dura muito, só uns 60 minutos. Mas que 60 minutos! Imagine o que é, do nada, passar a enxergar pontinhos brilhantes por tudo o quanto é lado ou ver linhas luminosas atravessando a paisagem ou ainda, quem sabe, perder o campo visual.

Como um fenômeno desses vem sem aviso prévio, quem já o vivenciou costuma sentir medo até de pegar no volante em estradas ou avenidas movimentadas. E se tudo se repetir, não é mesmo? Mas aí é que está:  por mais que cada indivíduo pareça ter um padrão, uma crise de enxaqueca nunca é igual a outra. Nunquinha.

Aprendi isso conversando com o psiquiatra Fabio Armentano, gerente médico da Novartis — e não, não pense que ele queria falar de novos medicamentos, embora 2019 prometa uma nova arma no arsenal. Armentano é inconformado com a falta de compreensão sobre essa doença — e ela, do seu lado, não dá moleza para ser compreendida. "Quem enxerga auras luminosas hoje pode não vê-las na crise futura. Pode ficar sensível à luz em um mês e não sentir nada disso na crise seguinte", descreveu o médico.

A própria dor muda de lugar. Em determinada época atormenta o lado esquerdo, depois passa a martelar o direito, noutro dia castiga a testa, anos depois aterrisa na nuca. Ela migra. Ou de onde acha que vem o termo migraine , nome da chatice em inglês, ou migrânea, outro apelido em bom português?

Durante um intervalo de quatro a 72 horas, que parece sem fim para o sofredor, a dor nunca é mansa. E pulsa, pulsa, pulsa… A fotofobia da fase anterior parecerá brinquedo de criança. Muitos pacientes relatam que nem vão ao pronto-socorro por causa da claridade do ambiente hospitalar — para eles, a visão do inferno.  Alguns enxaquecosos apresentam a osmofobia, ou seja, não suportam cheiros, às vezes nem o perfume da pessoa amada. E, quase que invariavelmente, há um enjoo forte. Alguns não resistem e vomitam tudo o que botam para dentro.

A dor passa e… a enxaqueca fica. A fase final, que ainda pode durar uns três dias, é uma espécie de ressaca. A cabeça pesa e a fadiga não tem nada de mimimi. Ela é física, real, inominável. Não à toa, a Organização Mundial de Saúde reconhece que essa é a sexta doença mais incapacitante do planeta.  E é esse pacote completo — do antes, do durante e do depois, com todo o seu conjunto de sintomas — que define uma enxaqueca. Não se pode reduzir seu drama, como se um analgésico fosse resolver as coisas, sendo tudo mais preguiça, mau humor ou má vontade. Quem dera…  A dor pode até aliviar, mas o que fazer com o restante do mal-estar?

Muitos médicos também se limitam a prescrever  tratamentos para os sintomas. Poucos sabem que existem medicações para serem usadas preventivamente, capazes de aumentar o intervalo entre as crises ou mesmo diminuir a intensidade dos sintomas.

Por um bom tempo, aliás, se disse que a enxaqueca era mal dos vasos sanguíneos da cabeça, que se dilatavam. Esqueça. Isso é consequência. Em animais, a vasodilatação, por si só, não provocou crises em ninguém. A enxaqueca, na realidade, é uma doença do cérebro, cuja origem é desconhecida. Sabe-se, porém, que uma proteína, a CGRP, está envolvida até o último fio de cabelo. Em experiências, ela, sim, se mostrou capaz a induzir a crise dolorosa.

Só que boa parte da CGRP do enxaquecoso vem de fora da massa cinzenta, produzida quando o seu  par de nervos trigêmeos na cabeça fica hipersensibilizado — de novo, por algum motivo misterioso. Aí dispara uma reação em cadeia dentro ao se encaixar em receptores nas meninges que o revestem.  "É bem nesse instante, quando a CGRP ainda está fora do cérebro, que o novo remédio contra a enxaqueca irá bloqueá-la", explicou Armentano.

O estilo de vida, diga-se, não interfere em quem não tem um território fértil ao problema. Uma pessoa pode tomar três taças de vinho e não sentir nada. Outra beberica um gole e se dana. A dificuldade é que, no mutável mundo dos enxaquecosos, o vinho, o queijo amarelo, o café e o chocolate — quatro gatilhos dos mais aclamados — podem desencadear a encrenca hoje e não, amanhã. Portanto, difícil se fiar nisso para evitar novas crises.

Certo pra valer é que enxaqueca, capaz de acometer homens e mulheres de todas as idades, incluindo crianças, não é um problema banal, nem nunca foi apenas uma dor de cabeça.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.