Entre a salada e a lasanha pronta, pode ser difícil escolher o pior
Eu ganhei a fruta cobrindo um congresso médico. Nesses eventos, não há intervalo. Na hora do almoço, o jeito é aceitar a caixinha de lanche que nos oferecem. E, em uma dessas, lá estava a maçã — gorda, vermelha, de casca de brilhante. Tentadora. Mas não a mordi. E nem a jogaria fora. Chegando em casa, foi direto para a fruteira. Ali, outras frutas foram passando do ponto e, portanto, acabaram consumidas na frente. Só que, três semanas depois, olhei para a maçã e ela me surpreendeu: continuava inteira, esquecida e linda. Durinha. Rubra. Inalterada. E eu, que de Branca de Neve não tenho nada, desconfiei. Já faz um mês e ela permanece lá, em um teste assustador de resistência — só quero ver onde isso vai dar…
Em tempos de PL 6.299/2002, a do veneno — lembrando que o país aumentou em quase 300% o uso de agrotóxicos de 2002 a 2012 e que estamos entre os maiores usuários deles no planeta –, qualquer um deveria entender minha desconfiança. Conversando com os meus talheres, questiono: será que vou morrer pela boca devagarinho devorando um alimento ultraprocessado ou em cada garfada veggie cheia de pesticida?
Ok, existe a opção dos orgânicos, de que eu mesma sou fã. Mas reconheço que ainda não é para o bolso de qualquer brasileiro, que não é encontrada em todos os cantos, que talvez não dê conta da explosão de gente à mesa que veremos por aí. E este, aliás, é um bom ponto de reflexão.
Em 2050, serão 9,7 bilhões de bocas para alimentar — um terço a mais do número de gente que se apinha na Terra hoje. Nesse futuro nem tão distante, a Organização das Nações Unidas (ONU) projeta que 7 em cada 10 indivíduos viverão em centros urbanos, longe de onde se planta e de onde os animais são criados. Então, é um pouco infantil imaginar a vida sem alimentos processados. Nem precisa viajar no tempo: quem ordenha a vaca no hall do apartamento? Quem colhe o trigo do pão de cada dia, integral ou orgânico, no quintal de casa? A maioria dos ingredientes daquilo que no jargão saudável se autodenomina "comida de verdade", como se o restante fosse pílula de astronauta da Nasa, passou por algum grau de processamento.
Fugir dos industrializados será difícil, ainda mais no futuro quente e lotado que nos aguarda. Sim, senhores, precisaremos dos tais conservantes, estabilizantes e outros aditivos para que a comida chegue direitinho até nós. Em tempo: também me desgosta a expressão aditivo químico, porque penso que qualquer partícula de matéria é química. O ácido ascórbico da laranja colhida no pé, por exemplo — popular vitamina C — , afinal, é químico ou não é? E, diga-se, também é usado como conservante de industrializados.
Por isso, cuidado com discursos de todos os lados: muita coisa se embola. Ouvi, certa vez, que ultraprocessado é um alimento que, além de conservantes, possui aditivos químicos. Como se os conservantes não fossem aditivos, como se tudo não fosse químico, ai, ai… Mas os ultraprocessados — a comida prontinha da silva, o biscoito recheado e toda essa turma — não costumam ser dos mais saudáveis mesmo.
Então, nem pense que sou da turma que aprecia a lasanha pronta, o macarrão instantâneo, o empanado que basta levar ao forno. A minha resposta é não, se querem mesmo meter a colher de pau no meu cardápio. Só pretendo desfazer os nós de confusão. Outra: acho tremenda esquisitice alimento industrializado, na tentativa de driblar o preconceito, querer ser chamado de alimento embalado. Se vou à feira, minhas frutas também podem sair de lá embaladinhas, ou não? O nome não disfarça, nem cola.
Só que não vamos conseguir abrir mão da comida industrializada. Ponto. E, provavelmente, nem dos aditivos. Os conservantes e os antioxidantes é que garantem que a manteiga não ficará rançosa em dois tempos na geladeira. Existem ainda os emulsificantes, que não deixam a gordura se separar da água — o que fatalmente acontece na receita preparada em casa, quando a gente nota o prato minando um pouco de água ou caldo. E isso não seria lá muito agradável no supermercado.
No entanto, concordo: essa mesma indústria deveria ouvir os consumidores que não desejam mais engolir tanta substância sem tanta necessidade, só para que "o mundo fique mais gostoso". Esse discurso, o da indulgência, também não anda colando mais. O morango, por exemplo, perde boa parte do seu pigmento vermelho durante o processamento. Será que a gente quer simplesmente o morango ou que a guloseima seja rosa-choque graças a corantes adicionados? Será que a gente quer o aroma legítimo daquela comida ou "aroma idêntico"? Aliás, quando eu leio "aroma idêntico", torço o nariz.
Ou seja, temos de debater os limites, sem a pretensão fantasiosa de zerá-los. E o mesmo vale para as lavouras. Segundo pesquisadores de biosssegurança da Embrapa, nos próximos 30 anos a temperatura do solo deverá subir entre 2 e 3 graus Celsius. Essa elevação arrasará com microorganismos essenciais para o sucesso de colheitas. Nesse admirável mundo aquecido (e estragado por agrotóxicos), para que haja frutas e hortaliças matando a fome de todos, temos que discutir com responsabilidade modificações genéticas de vegetais e saídas que possam, com menor risco possível, assegurar frutas e hortaliças no prato. E eu me refiro a estratégias de ecoagricultura, direção na qual Europa e Estados Unidos caminham — mas o Brasil pegou a contramão. Nada de terra e de vegetais envenenados — como, suponho, a maçã lá de casa.
Sim, no caso dos vegetais, ando já desconfiada, antes mesmo de mais venenos entrarem na minha cozinha. Da maçã, da alface, do tomate… De tudo o que cresce no solo intoxicado. Quando o poder de vetar um veneno sai das mãos de quem entende de saúde , a não ser em casos de "risco inaceitável" de acordo com a proposta de lei, estamos perdidos. Pergunto: o que seria risco inaceitável, se a maioria das substâncias agrotóxicas que entrarão no cardápio não tem, nem sequer, avaliação de risco em seres humanos?! Alguém compreende a lógica científica dessa proposta dos nossos políticos?
Atualmente, no Brasil, 70% dos vegetais chegam na minha e na sua casa com níveis de agrotóxicos que seriam acima do aceitável na maioria dos países do Hemisfério Norte. E um terço — um terço! — apresenta alguma substância proibida. Entre elas, o tricloform. Ele aparece no arroz e no feijão, bem como na alface, na abóbora e no brócolis. Aviso: mexe com os genes, com o sistema imune e com o sistema nervoso. Aliás, quem avisa é… a Anvisa. E mais: aparentemente, seres humanos são mais sensíveis a seus estragos do que animais.
A parationa metílica — é outro nome feio, mas veneno merece mesmo nomes feios — também pode estar no arroz e no feijão, talvez na batata, no alho, na cebola… Ela altera hormônios, provoca malformações fetais… Vou parar por aqui. A lista infelizmente é longa.
Mas, no Brasil em especial, aquele prato de salada — de "comida de verdade" — costuma estar envenenado. Para os embalados, processados, ultraprocessados, se estes lhe caem mal, é fácil: nosso poder está em tirá-los do carrinho do supermercado até encontrar nas gôndolas produtos de acordo com aquele mais saudável que todos nós buscamos. E a indústria que dê suas reboladas. Em relação aos agrotóxicos, para não ter de engolir veneno, só mesmo o antídoto das urnas. Ou friso: cada garfada veggie pode nos matar devagarinho. E o planeta vai junto para o saco.
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