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Blog da Lúcia Helena

Entre a salada e a lasanha pronta, pode ser difícil escolher o pior

Lúcia Helena

03/07/2018 04h00

Crédito:Istock

Eu ganhei a fruta cobrindo um congresso médico. Nesses eventos, não há intervalo. Na hora do almoço, o jeito é aceitar a caixinha de lanche que nos oferecem. E, em uma dessas, lá estava a maçã — gorda, vermelha, de casca de brilhante. Tentadora. Mas não a mordi. E nem a jogaria fora. Chegando em casa, foi direto para a fruteira. Ali, outras frutas foram passando do ponto e, portanto, acabaram consumidas na frente. Só que, três semanas depois, olhei para a maçã e ela me surpreendeu: continuava inteira, esquecida e linda. Durinha. Rubra. Inalterada. E eu, que de Branca de Neve não tenho nada, desconfiei. Já faz um mês e ela permanece lá, em um teste assustador de resistência — só quero ver onde isso vai dar…

Em tempos de PL 6.299/2002, a do veneno — lembrando que o país aumentou em quase 300% o uso de agrotóxicos de 2002 a 2012 e que estamos entre os maiores usuários deles no planeta –,  qualquer um deveria entender minha desconfiança. Conversando com os meus talheres, questiono: será que vou morrer pela boca devagarinho devorando um alimento ultraprocessado ou em cada garfada veggie cheia de pesticida?  

Ok, existe a opção dos orgânicos, de que eu mesma sou fã. Mas reconheço que ainda não é para o bolso de qualquer brasileiro, que não é encontrada em todos os cantos, que talvez não dê conta da explosão de gente à mesa que veremos por aí. E este, aliás, é um bom ponto de reflexão.

Em 2050, serão 9,7 bilhões de bocas para alimentar — um terço a mais do número de gente que se apinha na Terra hoje.  Nesse futuro nem tão distante, a Organização das Nações Unidas (ONU) projeta que 7 em cada 10 indivíduos viverão em centros urbanos, longe de onde se planta e de onde os animais são criados. Então, é um pouco infantil imaginar a vida sem alimentos processados. Nem precisa viajar no tempo: quem ordenha a vaca no hall do apartamento? Quem colhe o trigo do pão de cada dia,  integral ou orgânico, no quintal de casa? A maioria dos ingredientes daquilo que no jargão saudável se autodenomina "comida de verdade", como se o restante fosse pílula de astronauta da Nasa, passou por algum grau de processamento. 

Fugir dos industrializados será difícil, ainda mais no futuro quente e lotado que nos aguarda. Sim, senhores, precisaremos dos tais conservantes, estabilizantes e outros aditivos para que a comida chegue direitinho até nós. Em tempo: também me desgosta a expressão aditivo químico, porque penso que qualquer partícula de matéria é química. O ácido ascórbico da laranja colhida no pé, por exemplo — popular vitamina C — , afinal, é químico ou não é? E, diga-se, também é usado como conservante de industrializados.

Por isso, cuidado com discursos de todos os lados: muita coisa se embola. Ouvi, certa vez, que ultraprocessado é um alimento que, além de conservantes, possui  aditivos químicos. Como se os conservantes não fossem aditivos, como se tudo não fosse químico, ai, ai… Mas os ultraprocessados — a comida prontinha da silva, o biscoito recheado e toda essa turma — não costumam ser dos mais saudáveis mesmo.

Então, nem pense que sou da turma que aprecia a lasanha pronta, o macarrão instantâneo, o empanado que basta levar ao forno. A minha resposta é não,  se querem mesmo meter a colher de pau no meu cardápio.  Só pretendo desfazer os nós de confusão. Outra: acho tremenda  esquisitice alimento industrializado, na tentativa de driblar o preconceito, querer ser chamado de alimento embalado. Se vou à feira, minhas frutas também podem sair de lá embaladinhas, ou não? O nome não disfarça, nem cola.

Só que não vamos conseguir abrir mão da comida industrializada. Ponto. E, provavelmente, nem dos aditivos. Os conservantes e os antioxidantes  é que garantem que a manteiga não ficará rançosa em dois tempos na geladeira. Existem ainda os emulsificantes, que não deixam a gordura se separar da água — o que fatalmente acontece  na receita preparada em casa, quando a gente nota o prato minando um pouco de água ou caldo. E isso não seria lá muito agradável no supermercado.

No entanto, concordo: essa mesma indústria deveria ouvir os consumidores que não desejam mais engolir tanta substância sem tanta necessidade, só para que "o mundo fique mais gostoso". Esse discurso, o da indulgência, também não anda colando mais. O morango, por exemplo, perde boa parte do seu pigmento vermelho durante o processamento. Será que a gente quer simplesmente o morango ou que a  guloseima seja rosa-choque graças a corantes adicionados? Será que a gente quer o aroma legítimo daquela comida ou "aroma idêntico"? Aliás, quando eu leio "aroma idêntico", torço o nariz.

Ou seja, temos de debater os limites, sem a pretensão fantasiosa de zerá-los. E o mesmo vale para as lavouras.  Segundo pesquisadores de biosssegurança da Embrapa, nos próximos 30 anos a temperatura do solo deverá subir entre 2 e 3 graus Celsius. Essa elevação arrasará com microorganismos essenciais para o sucesso de colheitas. Nesse admirável mundo aquecido (e estragado por agrotóxicos), para que haja frutas e hortaliças matando a fome de todos, temos que discutir com responsabilidade modificações genéticas de vegetais e saídas que possam, com menor risco possível, assegurar frutas e hortaliças no prato. E eu me refiro a estratégias de ecoagricultura, direção na qual Europa e Estados Unidos caminham — mas o Brasil pegou a contramão. Nada de terra e de vegetais envenenados — como, suponho, a maçã lá de casa.

Sim, no caso dos vegetais, ando já desconfiada, antes mesmo de mais venenos entrarem na minha cozinha. Da maçã, da alface, do tomate… De tudo o que cresce no solo intoxicado. Quando o poder de vetar um veneno sai das mãos de quem entende de saúde ,  a não ser em casos de  "risco inaceitável" de acordo com a proposta de lei, estamos perdidos. Pergunto: o que seria risco inaceitável, se a maioria das substâncias agrotóxicas que entrarão no cardápio não tem, nem sequer, avaliação de risco em seres humanos?! Alguém compreende a lógica científica dessa proposta dos nossos políticos? 

Atualmente, no Brasil, 70% dos vegetais chegam na minha e na sua casa com níveis de agrotóxicos que seriam acima do aceitável na maioria dos países do Hemisfério Norte. E um terço — um terço! — apresenta alguma substância proibida. Entre elas, o tricloform. Ele aparece no arroz e no feijão, bem como na alface, na abóbora e no brócolis. Aviso: mexe com os genes, com o sistema imune e com o sistema nervoso. Aliás, quem avisa é… a Anvisa. E mais: aparentemente, seres humanos são mais sensíveis a seus estragos do que animais.

A parationa metílica — é outro nome feio, mas veneno merece mesmo nomes feios —  também pode estar no arroz e no feijão, talvez na batata, no alho, na cebola… Ela altera hormônios, provoca malformações fetais… Vou parar por aqui. A lista infelizmente é longa.

Mas, no Brasil em especial, aquele prato de salada — de "comida de verdade" — costuma estar envenenado. Para os embalados, processados, ultraprocessados, se estes lhe caem mal, é fácil: nosso poder está em tirá-los do carrinho do supermercado até encontrar nas gôndolas produtos de acordo com aquele mais saudável que todos nós buscamos. E a indústria que dê suas reboladas.  Em relação aos agrotóxicos, para não ter de engolir veneno, só mesmo o antídoto das urnas. Ou friso: cada garfada veggie pode nos matar devagarinho. E o planeta vai junto para o saco.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.