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Blog da Lúcia Helena

Mais de 1,5 milhão de brasileiros não param de se coçar sem saber o porquê

Lúcia Helena

14/08/2018 04h00

Crédito: iStock

Na vida de mais de 1,5 milhão de brasileiros — e de 1 a 2% da população mundial  —, num belo dia, elas brotam do nada. São lesões avermelhadas, que formam placas elevadas na pele e que coçam feito sei-lá-o-quê — as malditas urticas. Às vezes, essa comichão irritante é acompanhado de um inchaço dolorido, no fenômeno conhecido por angioedema. E, da mesma forma como tudo isso aparece sem aviso prévio, desaparece sem deixar vestígio passadas de uma a 24 horas. Some. Só que não, só que volta.

Dali a dois, três dias, a história inteira se repete. Para alguns, as urticas começam a bater ponto diariamente — ora nos braços e ora nas pernas, ora nas costas e ora na barriga.  A cada crise, uma região do corpo pode ser a vítima da vez. E, diga-se, existem pessoas que têm três ou mais crises entre um amanhecer e outro, sentindo na própria pele um inferno que gostariam de exorcizar com suas unhas.

Se a situação incômoda ultrapassa seis semanas, estamos diante do que os médicos classificam como uma urticária crônica e, em 60% dos casos, digo mais, trata-se de uma urticária crônica espontânea ou simplesmente UCE, que é caso mal compreendido daqueles 1,5 milhão de brasileiros.

Embora possa aparecer em qualquer idade, a UCE é mais frequente na faixa entre os 30 e os 55 anos, sendo um pouco mais recorrente em mulheres. E não adianta fuçar ao redor do indivíduo, caçando uma causa para a encrenca. Ela não precisa de um motivo externo. É exatamente o que o nome diz: espontânea.

Aliás, está aí um erro bastante comum.  Bastou a pessoa, toda se coçando, começar sua peregrinação por consultórios e ela já entra naquela de cortar isso e aquilo da rotina. Faz alguns sacrifícios à toa. Muitos clínicos, afinal, nunca ouviram falar da dita-cuja em sua formação e agem como se estivessem diante de um paciente alérgico. Não estão. A UCE não é uma alergia,  quadro em que seu organismo ataca algo estranho, de um ácaro no ar poeirento à proteína de um camarão. Nada disso.

Mas aí, nesse engano, é um tal de aposentar o perfume, fugir de produtos de limpeza, evitar determinados alimentos… Insisto, em vão. No que diz respeito à UCE, a pessoa pode voltar a tomar banho de colônia, fazer a faxina da casa, devorar chocolate ou até frutos-do-mar, se lhe der na veneta. A origem da UCE está dentro do corpo, que resolveu se atacar. Trata-se de um problema autoimune, como entendi ao conversar com o médico Luís Felipe Chiaverini Ensina, coordenador do Departamento de Urticárias da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia (Asbai).

Mas entendo a possível confusão. Durante uma alergia, o organismo reage ao que lhe provoca estranheza despejando no organismo moléculas de histamina. Elas, por sua vez, dispararam urticárias agudas, quando um indivíduo alérgico entra em contato com determinados remédios, alimentos, o escambau.

Já na UCE, por causa de um desequilíbrio, o sistema imunológico ataca moléculas na superfície dos mastócitos, uma de suas próprias células. Ou, então, vai para cima dos chamados IgE, anticorpos liberados em casos de rinite, por exemplo –mas, atenção, a UCE  não tem relação com alergias respiratórias. De qualquer modo, o resultado desses ataques são um banho de histamina, que entre outras proezas hiperativam nervos que, normalmente, detectariam o calor ou um toque. Daí o coça-coça.

E, como a coceira não dá trégua nem quando a pessoa tenta dormir no meio da madrugada,  claro que seus nervos ficam em frangalhos. Fora o estresse de estar em uma reunião importante de trabalho sem poder arrancar a roupa para arranhar a pele ou o constrangimento de aparecer no encontro amoroso com o rosto inchado e empipocado. Por causa da depressão e da ansiedade, comuns entre os pacientes, no passado os médicos chegaram a rotular casos de UCE como urticária nervosa. Injustiça. As pele não fica cheia de placas por causa de um estado psicológico e, sim, são as urticas e seu mal-estar que abalam a saúde mental.

Uma coisa importante: os pacientes, por mais desesperadora que seja a coceira, devem fugir da automedicação. Alguns analgésicos e antiinflamatórios  até pioram o seu quadro. O certo é procurar um dermatologista ou o alergista — sim, embora não seja uma alergia, essa é a especialidade mais bem preparada para entender a origem das urticas.

Há duas semanas, para apresentar aos médicos brasileiros das duas especialidades as novíssimas diretrizes internacionais para tratar a UCE, esteve no Brasil a dermatologista Ana Gimenez-Arnáu, que é sua autora. E tive a oportunidade de conversar com essa dermatologista do Hospital Del Mar, em Barcelona, Espanha.

Diretrizes médicas são uma espécie de passo a passo que o clínico deve seguir para obter os melhores resultados. E — ótima notícia — seguidas à risca, as novas diretrizes para UCE fazem com que 92% dos pacientes tenham um controle completo da doença. Adeus, inchaço, vermelhidão e prurido.

O documento, criado com 40 sociedades médicas de diversos países determina que o primeiro passo seja receitar um anti-histamínico de segunda geração — "aqueles que, entre outras vantagens, não provocam sonolência", explica Ana Gimenez-Arnáu. Para metade dos pacientes, isso ajuda, mas não resolve. Daí que muitos somam mais um anti-histamínico ao receituário.

Se a urticária continua mesmo assim, a terceira linha de tratamento é o que há de mais novo: o omalizumabe. Trata-se de um anticorpo monoclonal. Eu diria, em uma livre tradução da minha cabeça, que é uma espécie de molécula teleguiada que vai direto ao ponto, impedindo os mastócitos de liberar histamina, portanto agindo antes do seu derrame — ao contrário dos anti-histamícos, que tentam  impedir essas moléculas quando já estão em circulação.

A quarta e  última alternativa das diretrizes, usada raramente com os ótimos resultados do omalizumabe, é lançar mão da ciclosporina, um imunodepressor. Aproveitando, deixo um recado importante: corticoides não podem passar pela cabeça de ninguém. Eles não tratam uma UCE e ainda causam efeitos colaterais importantes. Muito custo para zero benefício.

O fundamental é o pacinete com UCE correr atrás de ajuda especializada, por mais que tenha se sentido um incompreendido até aqui. Achei ótima uma frase que ouvi do doutor Luís Felipe Ensina: "A UCE não mata, mas acaba com a vida de muita gente." Ora, se há tratamentos muito mais certeiros, não faz sentido ficar se coçando.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.