Topo

Blog da Lúcia Helena

Dedo na ferida: tão triste quanto a falta é o desperdício do sangue doado

Lúcia Helena

28/02/2019 04h00

Crédito: iStock

Existe um problema de que pouco se fala, diante do medo de que, se alardeado, as pessoas deixem de estender o seu braço nos bancos de sangue, o que nem é minha intenção. O fato é que boa parte do  material coletado, um terço ou às vezes mais, vai parar no lixo depois de dias ou semanas. E, embora haja pouco o que fazer, a gente pode ao menos minimizar a situação, lembrando que um em cada quatro de nós irá, um dia, precisar do sangue de um doador.

Não estou falando do que é descartado porque um dos testes de sorologia para doenças deu positivo — aí, óbvio, livrar-se da bolsa é mais do que necessário.  Nem dos 40% das pessoas que comparecem cheias de boa vontade para doar e que, antes da picada, são recusadas. Acontece.

Existem casos  de mulheres que precisam voltar para casa porque estão com a hemoglobina um pouco baixa, por causa de uma menstruação recente ou mais intensa. Assim como há dezenas de motivos de recusa  que garantem a segurança tanto do doador quanto de quem receberia o sangue.

Há ainda uma parcela que vê a porta do hemocentro fechar na cara por ser homem e homossexual ou bissexual— e agora cutuco outra ferida, mas não posso ser omissa. No Brasil, como em alguns outros países, machos só podem doar se ficarem um ano sem transar com outro macho. Vale refletir até que ponto a exigência não se embasa em preconceito, já que todo sangue coletado passa por testes. E não é preciso esperar um ano inteiro para que os anticorpos acusando uma doença, como a Aids, sejam flagrados por eles.  Sem contar que o comportamento de risco não é exclusividade desse grupo. 

Mas o desperdício é do sangue testado, aprovado e pronto para ser usado, que não encontra freguês no seu curtíssimo prazo de validade. As plaquetas, tão necessárias no tratamento do câncer, não resistem mais do que sete dias na bolsinha — há quem diga que o ideal seria usá-las no máximo em cinco dias. As hemácias ou glóbulos vermelhos podem aguardar mais: 42 dias. Não se pode extrapolar a validade.

Esses limites levam a um círculo nada virtuoso, que enxerguei ao assistir à apresentação da SaveLivez, startup que está na Eretz.bio, a incubadora do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. A cada vez que os estoques dos hemocentros baixam, eles fazem um esforço hercúleo para a população doar. Então, as pessoas \vão todas de uma vez, estendem o braço amigo e o local fica lotado de bolsinhas por um tempo, em uma operação cara em todos sentidos — para os profissionais de saúde que colocam a paixão naquilo, inclusive.

O saquinho onde vai parar o seu sangue, com suas  camadas de alta tecnologia e tratamento de higiene, somados aos testes que precisam ser feitos, fazem cada bolsa doada custar por volta de 400 reais.  Pelo amor… Claro que não tem cartão de crédito que pague uma vida. Mas a dinâmica não é das melhores: primeiro lota tudo; depois, não há a menor condição de ficar pedindo mais, até que, final infeliz do ciclo, todo o estoque vê o prazo de validade vencer no mesmo dia. Lixo.

O detalhe cruel é que, no meio desse caminho, pode faltar justamente aquele sangue que seria o seu. É a história da tal compatibilidade. Se injetarem em seu corpo o sangue com uma proteína que você não tem correndo nos seus 96 quilômetros de veias e artérias, pode apostar que seu sistema de defesa reagirá com violência fatal. 

O sangue tipo O não contém nenhuma dessas proteínas que provocam a ira dos anticorpos, por isso pode ser doado para qualquer pessoa. Mas quem é O só pode receber sangue do mesmo tipo. Já, ao contrário, existe gente com duas proteínas "extras" nas células vermelhas sanguíneas, a A e a B. Esses tipinhos AB  não estranham o sangue de ninguém, mas doam apenas para pessoas do mesmo grupo. Ainda existe quem só tenha a proteína A — e que doa para os seus iguais — e quem só tenha a B, na mesmíssima situação.

Outro fator de compatibilidade  é o Rhesus, chamado assim por terem descoberto algumas proteínas em macacos dessa espécie. Quem tem essas proteínas é Rh positivo e, se o seu sangue parar em um indivíduo Rh negativo, fará um estrago.

"O problema é quando um banco recebe 100 doadores, após fazer um chamado geral e aleatório. Pode ser que receba 80 pessoas com sangue A positivo, poucas dos outros tipos e nenhuma A negativo", exemplifica Rafael Oki, o CEO da SaveLivez. Então, mesmo que não faltem bolsas repletas, talvez não exista guardada uma única gota capaz de salvar a pele de um acidentado A negativo, entendeu? E acontece também de ninguém solicitar o que existe em estoque.

Rafael, engenheiro de produção com vocação para empreender, mergulhou de cabeça no problema há três anos, quando soube que a noiva viajaria 100 quilômetros só para fazer a doação em uma cidade vizinha, que estava precisando do seu tipo sanguíneo. Foi então que, primeiro, criou o salvovidas.com. Ali, qualquer doador pode se cadastrar e ser acionado por um hemocentro próximo de casa quando seu sangue especificamente estiver em falta.  Mas a nova empreitada de Rafael Oki é um largo passo além.

A SaveLivez desenvolve um sistema que, primeiro, prevê a demanda dos hospitais, analisa os estoques, programa tudo para que dê tempo — afinal, o caminho entre sair do seu braço e entrar no braço do outro, passando por testes, pode levar até sete dias — e, eis o pulo do gato,  capta doadores de tipos específicos.

A solução está sendo recebida com bons olhos até mesmo fora do país, pois o problema do desperdício acontece no mundo inteiro. Verdade que temos, pra variar, um agravante: só 1,8% de nós, brasileiros, somos doadores. A OMS recomenda que de 3% a 5% da população de um país doem sangue. E, mesmo assim, o bicho poderá pegar.

No Canadá, por exemplo, onde 3,1% das pessoas têm o hábito de fazer a doação, a estimativa é de que, na cidade de Ontário, em 2036, faltará o  tipinho sanguíneo específico de 36% dos pacientes atendidos nas emergências.

Entendo perfeitamente que até  hoje nenhum laboratório do planeta  tenha conseguido reproduzir o líquido que, em termos evolutivos, surgiu há 340 milhões de anos. Mas fico estarrecida ao enxergar essa perfeita zona em tempos de inteligência articifial, machine learning e afins. Sem contar as orientações confusas. Elas também atrapalham.

"Todo hospital demanda sangue", lembra o hematologista José Mauro Kutner, à frente do hemocentro do Einstein. . "Claro que aqueles que têm centros especializados em câncer e que atendem muitas emergências tendem a solicitar mais. Mas até as maternidades precisam." 

Aquela bolsa que você doa faz a diferença para mais de um paciente. Ela é separada em três partes: plasma para salvar quem sofreu uma grande hemorragia, por exemplo; glóbulos vermelhos, que dão literalmente mais gás para os doentes se recuperarem se, durante a internação, aparece uma anemia severa;  finalmente, plaquetas com fatores de coagulação, essenciais no combate a certos cânceres. "E plaquetas você pode doar com uma frequência maior, com intervalo de uma semana, em um limite de 24 vezes ao ano", lembra o doutor Kutner.

A dica do médico é continuar prestigiando as campanhas, que na falta de soluções como as esboçadas agora pelo mundo, com inteligência artificial ou não, ainda são a única saída para receber coletas — sempre, sempre, sempre bem-vindas. Aliás, bem lembrado: precisamos dobrar o número de doadores.

Mas também ninguém deve se limitar aos pedidos de socorro dos hemocentros. No mundo ideal, o sangue doado estaria continuamente  pingando nesses locais. E, diga-se, algumas temporadas são críticas: férias, feriados e estações chuvosas, quando doadores regulares deixam de comparacer.

Se para você for fácil, ótimo. Se não puder doar, ajude dando carona ao doador, tirando o medo de quem mal olha para agulhas… Aliás, esse Carnaval, que soma chuva e suor, é um  período de alerta típico, até porque na folia costumam ocorrer mais acidentes.  

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.