Topo

Blog da Lúcia Helena

Essa história de chá que desincha pode ter os ingredientes das fake news

Lúcia Helena

07/03/2019 04h00

Crédito: iStock

Pegue um punhado de informações que, em uma olhadinha mais distraída, soam plausíveis. Combine tudo para impressionar e tenha na manga provas de sua veracidade, ainda que fora do contexto exato — sabe como é, se alguém questionar… Junte de um jeito que seja sorvido com prazer, depois de jogar o seu recado (ou produto) no calor do que as pessoas mais querem ouvir e — por que não? — consumir, talvez topando pagar caro para matar esse desejo. 

Só tome cuidado para não levantar a fervura e queimar tudo, inclusive o próprio filme. Por exemplo, insinue, mas nunca afirme. Use imagens daquelas que falam mais do que mil palavras. Enfim, deixe a sua mensagem, aquela que não é tão verdadeira, nas entrelinhas. E, daí, se no último golinho alguém contestar a sua legítima fake news, você poderá saltar de banda. Afinal, nunca disse aquilo, disse?

Com essa receita você prepara um sucesso e pode surfar nele por algum tempo, até que se frustrem as expectativas. A onda que sobe agora é a dos chás que prometem desinchar, murchar… Já engoliu um desses? Vou dizer: são bem gostosos. Bem, bem gostosos. Mas… Só gostosos. E aí, quando coloco esse "só",  não é mais minha opinião pessoal. Fui ouvir alguém capaz de dominar a informação científica — no caso, a biomédica, farmacêutica e fitoterapeuta Raíssa Sansoni, que atualmente, em seu doutorado na Universidade de São Paulo, pesquisa espécies usadas na alimentação capazes de frear o câncer. 

"Encontramos nesses chás vegetais que se dividem em três tipos de ação:  diurética, tônica ou digestiva", analisa a especialista. Pois é, então de orelhada soam mesmo críveis as promessas de encolher, afinar… Vamos pegar os componentes de um produto desses: "A carqueja, o alecrim e a hortelã ajudam na digestão", começa Raíssa. E, ora, todo mundo tem a impressão de que a barriga fica menos estufada se nada pesa no estômago. "A sálvia teria um efeito desintoxicante. O gengibre diminuiria, sim,  a retenção de líquidos. O guaraná é um bom estimulante e, como o chá verde e o mate verde, aceleraria o metabolismo." 

De fato, qualquer erva dessas tem pilhas de trabalhos. No entanto, em geral realizados com elas isoladas e, não, combinadas, em concentrações maiores, muitas vezes em cápsulas ou extratos. Hora de jogar água fria nessa chavena: "A concentração desses chás é, com a mais absoluta certeza, baixíssima para a gente obter qualquer um dos efeitos de que falei", afirma Raíssa Sansoni. "São oito ingredientes competindo por espaço dentro do sachê, ou seja, é muito pouco de cada um deles." Daí, o resultado é uma simples infusão aromática. Ervas e raízes soltam seus óleos essenciais e um ou outro princípio ativo na água.  Atenção: um ou outro.  Ah, sim, é que tem mais um ponto — o ponto de infusão, diluindo as promessas de vez.  

É notório na literatura científica que as espécies citadas precisam de um tempo mínimo de cinco minutos na água quente para que comecem a desprender as moléculas com atividade no organismo. "O tempo recomendado é de 5 a 10 minutos", informa Raíssa Sansoni, dando a precisão necessária a essa história. Só que detalhe: em comum, todos esses chás que desinchariam ou murchariam dão instruções para você deixar o sachezinho mergulhado na água por um período de 3 a 5 minutos. Logo, você engole antes de a brincadeira dos princípios ativos começar pra valer. Ntz, ntz, apenas o perfume vai parar na sua xícara.

Tem mais: é chá de menos. Talvez pelo preço de fazer inveja a bule inglês, a sugestão é que você use um sachê ou dois por dia. "Para ter ideia", diz Raíssa, "se fosse apenas chá verde na formulação, para que ele tivesse qualquer efeito a recomendação clássica seria de cinco xícaras diárias. Então, como alguém poderia tirar benefício tomando uma xícara por dia, ainda mais se há um tiquinho dele misturado com outras ervas?" 

Aproveito e pergunto se a mistura não poderia ser vantajosa, impressionada com termos como "sinergia" e afins que li na divulgação desses produtos.  "Não há vantagem alguma em se juntar tanta coisa. Se os ingredientes estivessem em uma quantidade maior, a mistura de oito deles em uma infusão única só aumentaria o risco de toxicidade para o fígado", responde a especialista.

Viu? Nem coloque na cabeça a ideia de comprar tudo isso no empório natureba, misturar e preparar infusões mais concentradas  (e baratas). Por ironia, o fato de o chazinho das blogueiras ser , como direi…,  café com leite?, faz com que não arrisque a sua saúde.  Nem todo mundo pode tomar baldes de chá verde sem sentir palpitações, por exemplo. Já o efeito diurético de alguns ingredientes pode ainda baixar demais a pressão. Para quem tem diabetes, a carqueja e o gengibre provocariam uma hipoglicemia perigosa em dosagens mais elevadas. Enfim… 

Aliás, não dá para usar ervas medicinais sem consultar quem entende delas. Ora, as causas de um inchaço podem ser diversas. Não dá para comparar aquele que é causado pelos hormônios de uma TPM com o de um organismo às voltas com o excesso de açúcar. E, ponto pacífico, nenhum chá emagrece, fazendo seu corpo perder gordura em vez de líquidos retidos.

"De fato, esses chás prometem e não cumprem. Triste ver artistas e blogueiros famosos prestarem esse desserviço",  opina o professor Marcio Mancini que, além de chefiar o Grupo de Obesidade do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, editou as diretrizes da Abeso (Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica).  Nelas, há um esclarecedor capítulo sobre o uso de chazinhos para tratar o excesso de peso. "Como dizia o professor Alfredo Halpern, 'o gordinho é explorado"', lembra Mancini, citando o maior estudioso da obesidade que já tivemos

Mas alguém falou em emagrecimento? Não li, de fato, essa expressão nem outras do gênero nos sites desses novos chás. No entanto, a sugestão é soprada sutilmente nos próprios nomes  — ou não? Procurei a marca pioneira, a Desinchá, criada por dois jovens empreendedores mineiros que decidiram trocar a tecnologia pelo universo saudável,  enxergando que ele, sim, daria a maior colher de chá.

Segundo reportagem publicada pela revista Exame, da Editora Abril, a empresa cresceu 2.740% em 2018, faturando 3,6 milhões de reais no ano de seu lançamento, com Bruna Marquezine como rosto saudável da marca — um rosto que tem aquele corpão, uma imagem no lugar de mil palavras  

Hoje, a Desinchá produz 6 milhões de sachês por mês e vende por 86 reais a caixa com 60 deles, pretendendo se expandir para os Estados Unidos."Queremos ser uma empresa de lifestyle e não de chá, por isso divulgamos informações sobre alimentação equilibrada e atividade física", me disse Eduardo Vanzak, um dos sócios.  "Nossa missão é mostrar o caminho para uma vida mais saudável." Bacana, mas vende chá.

A infusão, confirma Vanzak, ainda não tem registro de bebida funcional na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Segundo a nutricionista Georgia Castro Fernandes, que presta consultoria sobre assuntos regulatórios para algumas das maiores empresas do setor no país, isso significa que não pode alegar qualquer benefício para saúde além de promover um momento de gostosura.

Vanzak diz que os testes já começaram e devem demorar um ano. Mas Georgia esclarece um processo assim demora três anos, se não tiver nenhum contratempo. Primeiro, devem ser feitas análises para garantir a segurança do mix de ingredientes e, depois dessa etapa, viria a mais complicada de todas: "São estudos clínicos para comprovar efeitos fisiológicos. Se não provar que oferece benefício para indivíduos saudáveis, não poderá dizer que é funcional." Aliás, se o efeito fosse terapêutico, tratando problemas como retenção de líquidos, seria remédio em vez de bebida — mas, pelo jeito, não será o caso.

O que é certo: ninguém deveria divulgar que a Desinchá está se criando um conceito de chá funcional. Todas as ressalvas valem para os seus concorrentes, que não param de imitá-la. Atenção:  esses produtos podem, sim, ser vendidos em farmácias, do mesmo jeito como elas  comercializam banana-passa, água mineral, balinha diet… Não quer dizer que sejam um santo remédio.

Outro ingrediente desses chás da moda é o toque de humor na comunicação. Penso, então, que deve ser piada destacar que os sachês não conteriam glúten nem lactose. Ora, nunca bebi chá de pão, nem vi sair das tetas de vacas infusões aromáticas. Mas, repito, se não murcham o seu bolso com esse preço, são bebidas gostosas, capazes de desinchar tanto quanto um refrescante copo de água.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.