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Blog da Lúcia Helena

Dores de barriga: por que hoje muita gente vive com o intestino inflamado?

Lúcia Helena

12/03/2019 04h00

O que você vê é um cólon por dentro, com as paredes manchadas de pontos inflamados. Crédito: iStock

Está aí a pergunta que vale 1 milhão. E isso se derem um bom desconto, fazendo aqui uma brincadeira barata já que, para você ter uma ideia, um único remédio biológico para controlar as doenças inflamatórias intestinais, conhecidas pela sigla DIIs, como alternativa terapêutica eficaz aos tradicionais corticoides, faz os americanos desembolsarem 12 bilhões de dólares por ano. Entender o que está acontecendo bem atrás do nosso umbigo, portanto, vale ouro.

Os males crônicos que inflamam o intestino são cada vez mais comuns, reparou? Quando que, há alguns anos, você teria lido sobre a doença de Crohn? Mas, aposto, no mínimo já ouviu falar dela. Atualmente, há cerca de 50 casos em cada 100 mil habitantes no planeta. E tem outra: a retocolite ulcerativa, mais um tipo comum entre os transtornos que inflamam nossas tripas — que, aliás, não devem estar digerindo tanta modernidade.

Podemos até usar aquele papo batido, válido para muitos problemas em ascensão, de que agora são feitos mais diagnósticos e de que todo mundo fica sabendo de tudo graças ao acesso à informação. Por esse raciocínio, o crescimento de uma doença seria mais ilusório do que real. Mas será que, no caso das DIIs, só isso explicaria o fato de terem quase dobrado nas duas últimas décadas? Tudo leva a crer que não.

Corremos no dia a dia a ponto de não termos um minuto de descanso — e o estresse pesa, sim, na barriga. Também engolimos ligeiro grandes volumes de comida para o pobre intestino dar conta e, pior, muitas vezes aquela que pode ser preparada de forma igualmente mais rápida, a ultraprocessada.

Uma das provas de que essa aceleração e apetite por comida processada têm culpa no cartório é que a curva das DIIs, embora alta, se encontra estável nos países desenvolvidos. No entanto, sobe feito foguete nas nações em desenvolvimento, em que a população só mais recentemente começou a experimentar as delícias e as agruras da rotina agitada e a consumir um volume maior de comida pronta ou semi-pronta.

O intestino paga o pato. "Ele é bem mais complexo do que qualquer um de nós achávamos", avisa gastroenterologista Jaime Zaladek Gil, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. Não se trata um mero tubo comprido por onde os alimentos passam, seus nutrientes são quebrados, absorvidos, até as sobras serem excretadas e ponto. Ele é afetado pelo estado emocional, abriga trilhões de microorganismos, se deixa influenciar pelos hormônios e — eis o "x" da nossa questão — tem aspecto imunológico importante.

"'Se imaginarmos todo o caminho da digestão até a formação das fezes, dá para entender que uma bactéria que entrou pela comida vai se multiplicando pelo trajeto", diz o doutor Jaime Gil. "Portanto, o intestino, que está na etapa final, precisa criar muitas barreiras e, para isso, ele próprio contém tecidos imunitários." O problemaço surge quando, esgotados, esses tecidos passam a derramar mais substâncias inflamatórias do que antiinflamatórias. Aí, tocam uma espécie de incêndio no local.

Atenção: não confunda nada disso com a síndrome do intestino irritável, a SII, em que períodos de prisão de ventre se alternam com temporadas de diarreia. O nome é enganador, porque ela não irrita as paredes intestinais com inflamações. Tem a ver com a motilidade do órgão, que ora faz a sua dança do ventre para empurrar o bolo fecal em ritmo acelerado, ora se move em câmara lenta, quase parando. Isso pode causar cólicas e ameaças de vexames chatos, sim. Mas, de perto, ninguém achará uma feridinha sequer provocada pela SII, enquanto quem tem Crohn ou retocolite sai bem machucado.

Na doença de Chohn, as lesões provocadas pelas próprias defesas aparecem em qualquer trecho entre a boca e o ânus, enquanto na retocolite elas se limitam ao intestino grosso e ao reto."A parede do intestino lembra uma bolacha recheada", descreve o médico Jaime Gil. "Na retocolite, apenas a camada mais superficial é afetada", diz ele. "Em compensação, há mais sangramentos e vontade de ir ao banheiro".

Já na doença de Crohn, as células imunes transformam todas as camadas das tais paredes em campo de batalha. As alças intestinais, sob os ataques, podem se tornar muito estreitas. Sem contar o risco de fístulas, que são pequenas comunicações entre o intestino doente e outros órgãos, como a bexiga e a pele. Ela, aliás, pode apresentar lesões avermelhadas. Não raro, a pessoa procura um dermatologista antes de investigar a saúde dos encarregados da digestão.

Para confundir mais, os sintomas das DIIs são parecidos — distensão abdominal, náusea, diarreias, gases…. Lembram inclusive os da síndrome do intestino irritável. E fato: há poucos médicos treinados para flagrar esses males modernos. O paciente muitas vezes fica sem ter a quem recorrer.

Também existe outra situação preocupante e, segundo o doutor Jaime Gil, espantosamente comum: às vezes, o sujeito come algo que estava estragado e esse azar provoca uma baita inflamação aguda, claro. Só que, em certos organismos, ela pode demorar semanas para passar de vez. "Aí, se o médico sentindo-se pressionado pedir exames, ele encontrará algumas feridas que ainda não sararam e irá condenar aquele indivíduo a viver como se tivesse uma DII, quando não tem". Sim, tem diagnóstico errado por aí e, consequentemente, tratamentos pesados feitos à toa.

A sentença de uma DII só acontece depois de um quebra-cabeças, montado sem pular pecinhas, como descobrir se houve uma intoxicação alimentar semanas antes, pedir primeiro exames laboratoriais, considerar a faixa etária,  para daí partir para a colonoscopia, a ressonância magnética, a tomografia e eventuais biópsias.

As DIIs surgem com maior frequência em pessoas entre 15 e 20 anos. Ou, em outro pico, em pessoas em torno dos 40.  Para o doutor Jaime Gil, são idades caracterizadas por reviravoltas, tanto hormonais como no estilo de vida, geralmente associadas a mais estresse, como o do adolescente que ainda não sabe o que fazer no futuro.

Flagrada a DII, o tratamento medicamentoso sempre visa diminuir a agressão do organismo ao intestino. Mas, curioso, no que diz respeito à dieta, ninguém mais recomenda muitas restrições: "Não há vantagem em proibir alimentos para quem já dificuldade para comer, tende a ficar desnutrido e a perder peso", afirma Jaime Gil. "Apenas nos períodos de diarreia, deve-se evitar lácteos, capazes de soltar mais ainda o intestino, assim como tudo o que fermenta e que ajudaria a formar gases. Tirando isso, toda dieta restritiva para um paciente com Crohn ou retocolite não tem embasamento científico." Ah, sim, ter uma alimentação mais caseira e menos processada é atitude bem-vinda — para qualquer cidadão, diga-se.

Uma decisão que não é opcional: apagar o cigarro Ele não só está ligado às causas como agrava em até quatro vezes as manifestações da doença de Crohn. O certo, como recado final, é não menosprezar  um escape de sangue pelas fezes, dores de barriga que sempre se repetem ou uma perda de peso assim, do nada.

Por incrível que pareça, as pessoas com DIIs não dão tanta bola aos primeiros sinais — lembre-se, em geral são jovens, aqueles seres que se acham eternos. Confunde mais suas cabeças o fato de que algo diferente aparece em um dia e desaparece em outro. Não é porque sangrou uma vez que irá derramar sangue em cada ida à privada, por exemplo. 

Uma DII, ainda mais começando cedo, castiga o corpo da cabeça aos pés. Não  apenas devido à má nutrição. A área doente do intestino despeja caminhões de substâncias inflamatórias pelos vasos sanguíneos e eles terminam penalizados por tabela. O risco de um indivíduo infartar antes dos 50 quando tem uma DII descontrolada é nove vezes maior do que na população em geral. 

Outra ameaça é a do câncer, especialmente o de cólon. Uma retocolite descuidada, por exemplo, aumenta a probabilidade desse tumor em até 15 vezes. Faz sentido: adoecer é, em boa parte, viver inflamado. E vamos combinar, se as paredes do intestino fossem esticadas no chão, teriam a área de uma quadra de tênis inteira. No caso,  inflamada — uma grande encrenca compactada no ventre.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.