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Blog da Lúcia Helena

Milhares de jovens têm um diabetes diferente e usam insulina sem precisar

Lúcia Helena

02/04/2019 04h00

Crédito: iStock

Diabetes é uma palavra que não veste um único problema. Na verdade, cai feito luva em uma série de doenças que às vezes se comportam de um jeito bem diferente entre si e que, em comum,  têm apenas o fato de provocarem o tal excesso de glicose na circulação. Mas, sim, são muitos os diabetes. E vou logo contando: existe até mesmo um diabetes que não provoca danos nos rins, nos olhos, no coração e nos nervos dos pés à cabeça. E que, portanto, não exige um remédio sequer, nem comprimido, nem injeção de hormônio. 

Mas, imagine, essa criatura corre o risco de ser tratada da maneira errada, usando medicação à toa. Isso porque o mundaréu por trás da expressão diabetes — um mundo tão vasto que é habitado por nada menos do que 14 milhões de brasileiros, estimando com modéstia — pode ser dividido em quatro grupos. Só que um deles é pouquíssimo conhecido. 

O tipo 1, este famoso, é autoimune: ainda na infância ou na adolescência, o sistema de defesa resolve encrencar com as células produtoras de insulina no pâncreas e, aí, não resta uma delas pra contar história. Então, sem o abastecimento normal de insulina, a glicose obtida por meio da alimentação simplesmente não consegue entrar nas células. Se não é feita a reposição desse hormônio por injeções, apesar da fatura de açúcar no sangue, elas morrem de fome. Ao pé da letra.

O tipo 2 costuma aparecer em adultos, pode ser tratado apenas com medicação oral e está muito relacionado ao excesso de peso. Se bem que, agora os médicos desconfiam, nessa gente as células-beta do pâncreas — aquelas tais que produzem insulina — já não devem ser nenhuma maravilha de fábrica. "Essa forma resulta de uma soma de obesidade com células-beta não tão boas. Caso contrário, toda pessoa com excesso de peso teria diabetes", raciocina a endocrinologista cearense Milena Teles, médica do Grupo Fleury e também responsável pelo Ambulatório de Diabetes Genético do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP. Foi ela quem me descortinou o admirável grupo dos diabetes raros. Eu, pelo menos, fiquei de queixo caído.

Ah, sim, o terceiro grupo dos diabetes é o gestacional, que aparece na gravidez e passa. Ele também é mais conhecido de todos nós. E, aí sim, finalmente vêm os diabetes raros.  Será que são tão raros mesmo? Tudo bem que 90% dos diabéticos são tipo 2; outros 5%, talvez um pouquinho mais, são tipo 1… Os diabetes raros, então, ficam no máximo com uma fatia de 2%, até que se prove o contrário. 

Parece pouco, olhando só para porcentagens, mas faça as contas: são cerca de 280 mil brasileiros, chutando baixo. Estudos mais ousados, publicados em 2015, apontam que até 6% dos jovens diabéticos — e não 2% — são portadores de tipos raros. Vai vendo o tamanho da confusão… Aliás, mesmo partindo do princípio de que são 280 mil, ora, eles não são poucos!

Essa turma é uma miscelânea. Nesse saco de gatos, existem aqueles em que o excesso de glicose é uma mera consequência de outra coisa. Por exemplo: pode sobrar açúcar no sangue de quem precisa tomar corticoides sempre. Outros indivíduos sofrem de doenças endócrinas que nada têm a ver com o pâncreas, como é o caso da acromegalia, um excesso de hormônio de crescimento em adultos que também eleva a glicose sanguínea. Mas há também os fantásticos tipos de diabetes monogênicos. Vale até eu repetir para gravar: formas monogênicas. Essas podem ser o pandemônio.

Por trás dos tipos comuns de diabetes, como o 1 e o 2, existem muitos genes envolvidos. No caso dos monogênicos, como o nome indica, o defeitinho maldito está em um gene só. Unzinho. E ele pode ou  bagunçar a secreção de insulina ou levar as células a resistirem a esse hormônio. 

O mais prevalente dos diabetes monogênicos atrapalha justamente a produção do hormônio do pâncreas e ele atende pela sigla MODY, já ouviu falar? Confesso: até ontem, eu não. Ela vem do inglês maturity-onset diabetes of the young. O nome lembra um tempo em que o diabetes tipo 2 era chamado de senil, típico da maturidade.  Pois bem: em uma livre tradução, seria o diabetes da maturidade que acontece em jovens. Isso porque se assemelha mais ao tipo 2 no comportamento. Mas  digamos que, olhando de fora, tem a cara do tipo 1. 

Ora, o jovem com MODY é magrinho. Sim, estamos falando de jovens — no máximo com uns 25 anos. "O médico vê o menino ou a menina exibindo magreza e com a glicemia alta. Daí, deduz ser mais um paciente do tipo 1. Resultado: o adolescente começa a injetar insulina sem necessidade", diz Milena Teles.

O teste do painel genético, que avalia de uma só vez 14 genes por trás das formas de diabetes monogênicas —  MODY entre elas  — ainda é salgado, por mais que o preço tenha encolhido nos últimos anos. Ele seria a prova dos nove e a torcida é para que se popularize ainda mais. No entanto, há uma pista preciosa que qualquer um pode notar: se o pai ou a mãe é diabético e se, neles, a doença também surgiu cedo. "O tipo 1 não é hereditário. Se a gente olhar, só 5 em cada 100 portadores desse diabetes que precisa de fato das injeções de insulina têm pais diabéticos", ensina Milena Teles. Portanto, a lâmpada amarela acenderia quando o adolescente tem mais casos da doença na família. Ora, ora, o MODY é herdado. Ponto.

Outra pista: esse paciente secreta, sim, insulina. Em uma quantidade mixuruca, mas secreta. "Além disso, se eu fizer um exame de anticorpos, verei que o sistema de defesa dele não está agredindo o pâncreas", alerta a doutora Milena. E convenhamos: teste de anticorpos é mais acessível do que os exames genéticos e deveria ser o básico dos básicos para diferenciar um diabetes de outro. No entanto, quando a raiz do diabetes está em um único gene os  enganos são frequentes. 

O MODY dos adolescentes costuma dispensar insulina. "Na maioria dos casos, a simples medicação oral dá conta do recado. Aliás, em baixíssima dose, porque  às vezes até meio comprimido resolve", diz a médica. O impacto da descoberta não é só no tratamento. Vale para o aconselhamento da família: afinal, quem carrega o gene da doença tem 50% de probabilidade de passá-lo para o filho.

Entre os MODY, para meu espanto, existem até mesmo casos em que a alteração está em um gene chamado GCK e, se é assim, o jovem tem uma hiperglicemia leve quando fica em jejum. "Sabemos que o excesso de glicose só é especialmente danoso nas primeiras horas após a pessoa comer algo, o que chamamos de glicemia pós-prandial", conta a doutora Milena. Na prática, isso significa o seguinte: não há risco algum para os órgãos. Logo, não há o que tratar.

Há indivíduos com defeitos no GCK acompanhados há mais de 25 anos sem complicação alguma e, diga-se, eles nem engolem a tal dose baixinha de remédio oral. Só se cuidam para manter o peso, com a dobradinha de exercício e dieta equilibrada. Mas, até que todos fiquem ligados, pacientes com diabetes assim, aos milhares, por total desconhecimento e falta de testes genéticos ainda serão tratados com picadas de insulina. Um equívoco doloroso.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.