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Blog da Lúcia Helena

O jeito de entender demências como o Alzheimer nunca mais será o mesmo

Lúcia Helena

09/04/2019 04h00

Crédito: iStock

Num piscar de olhos, em 2050, teremos 17 milhões de pessoas com demência no Brasil. Nossa população envelhece a passos acelerados: aqui, o número de idosos saltou 20% só nos últimos cinco anos. Será que estamos com a cabeça bem preparada para essa explosão? 

Essa é uma das questões que não devem passar em branco amanhã, quando cerca de 500 pesquisadores brasileiros e de diversos países da América Latina se juntam a cientistas de outros continentes no Simpósio da Associação Internacional de Alzheimer, que acontece em São Paulo. 

O encontro de três dias não se limitará a discutir o que há de novo, embora, aí, não falte assunto. Há tremendas reviravoltas na compreensão do cérebro doente. Só que os participantes também querem bolar estratégias viáveis para enfrentar as demências nos países latino-americanos. Bem, temos as nossas peculiaridades… No Brasil, então! Quer ver uma delas? Aqui, as demências aparecem mais por volta dos 60 anos, enquanto em outras bandas da Terra tendem a se manifestar depois dos 70. 

"Disseminar conhecimento, inclusive entre os profissionais de saúde, é fundamental. Ora, não há psiquiatras, geriatras e neurologistas suficientes para diagnosticar esses casos. É preciso então que outros especialistas, como o clínico geral, aprendam depressa a reconhecê-los", defende o neurologista Ricardo Nitrini, membro do comitê científico do evento, professor da Universidade de São Paulo e um dos nomes mais expressivos da ciência quando a gente ouve falar em demências.

Aliás, quando soa essa expressão, demência, ela costuma ser mal interpretada. Associamos "demente" a quem perde a memória. Justamente por isso, o Alzheimer é o primeiro problema que vem à mente. E também porque, de fato, ele representa pouco mais de metade dos episódios. 

Por demência, porém, deveríamos entender um grupo bem maior de doenças que progridem devagar, levando o sistema nervoso a perder funções —  diferentemente de um derrame, por exemplo, o qual, quando acontece, faz seus estragos na massa cinzenta em uma só tacada, de uma hora para outra.

Passo a passo ladeira abaixo, o cérebro com demência às vezes deixa de raciocinar direito. Mas pode ser diferente. Pode, como nos casos de Parkinson, ir perdendo a coordenação dos movimentos (sim, o Parkinson é outra forma de demência). Ou manifestar mudanças graduais de comportamento. 

Nessa derrocada, chega um momento em que toda demência se torna obstáculo à autonomia. No final, a pessoa não consegue nem sequer comer sozinha ou se banhar. Muito menos sair por aí por conta própria. Mas tudo isso, friso, não tem a ver exclusivamente com perda de memória. Nem mesmo quando se trata de Alzheimer. 

"Hoje sabemos que esse mal começa em áreas cerebrais envolvidas com as emoções", ensina a neuropatologista Lea Tenenholz Grinberg, professora licenciada da Universidade de São Paulo e que também leciona na Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos. "Daí que um dos primeiros sinais do Alzheimer pode ser uma depressão. A pessoa  vive cansada, com uma vontade quase incontrolável de tirar uma soneca no meio da tarde", ela conta ao blog. O desânimo, portanto, surge antes dos famosos lapsos.

A razão, diz a cientista, é biológica. Ou seja, há sempre algo diferente, físico mesmo, acontecendo na intimidade do cérebro. Mas eis um novo enrosco: no que diz respeito ao Alzheimer, os cientistas podem estar seguindo uma pista errada faz tempo.

Há décadas, eles apontam o dedo em riste para placas entre os neurônios, formadas por proteínas conhecidas como amiloides. O motivo para acusá-las:  elas são invariavelmente encontradas na massa cinzenta de quem morreu com a doença.

Assim, por estar sempre presente, esse acúmulo de proteínas amiloides, que seriam comparáveis a um lixo cerebral, foi responsabilizado pelos apagões nas lembranças. Eu mesma já bati nessa tecla inúmeras vezes e, agora, preciso fazer a correção. E hoje há até quem especule que cometemos uma baita injustiça. Talvez (atenção, por enquanto é só um "talvez") as benditas placas de amiloides estivessem ali, no cérebro com Alzheimer,  em uma tentativa de protegê-lo da doença. Não muda tudo?

A luz se fez quando  remédios, testados para mirar sem dó as tais proteínas amiloides, deram com os burros n'água. Imagine a frustração geral: ora, não há nada de novo nas farmácias para tratar o Alzheimer desde 2003.

Mas, nas experiências, os voluntários que testaram esses fármacos não melhoraram.  Pior, a diminuição das placas provocada pela medicação acelerou o avanço da demência em alguns deles. "Será então que essas placas seriam simplesmente uma reação, até protetora, a outra coisa qualquer que está acontecendo no cérebro de quem tem Alzheimer?", pergunta-se a professora Lea.

Sabe-se que há no mínimo mais uma proteína na jogada, a TAU. Ela também se acumula feito lixo no cérebro com Alzheimer e muitas pesquisas fazem suas apostas na redução de sua presença para colocar um freio nessa demência. 

Para a maioria, a culpa não é dos genes

Em relação aos estudos com novas drogas para remover as placas de amiloides, eles foram praticamente interrompidos. A medicação continua sendo dada apenas para casos totalmente provocados por determinadas alterações genéticas. "Isto é, estamos falando de um possível benefício para um ou dois pacientes em cada 100", avisa Lea Grinberg.

Isso mesmo. Sabe aquela história de que a avó teve Alzheimer, então posso ter Alzheimer também? É verdade para menos de 2% dos doentes. Em outras tantas pessoas, a maioria, alguns genes alterados somente aumentam o risco, mas não determinam um destino sem boas memórias. Vale, então, cautela com testes genéticos.

"Se olhamos para uma população inteira, notamos que aqueles com uma variação no gene de uma substância chamada apo-E têm uma probabilidade até  cinco vezes maior de desenvolver o Alzheimer",  dá um exemplo o neurologista Paulo Caramelli, professor da Universidade Federal de Minas Gerais, também membro do comitê científico do simpósio. "No entanto, existem pessoas que, mesmo com essa mutação, não manifestarão a doença."

Daí que entrar em pânico por alterações desse tipo costuma ser bobagem. Melhor entrar em pânico naquela churrascaria rodízio, na feijoada do sábado, na mesa de doces e naquele sofá que fica tentando o seu corpo a faltar na academia. Inclua na sua lista de medos o excesso de álcool, o estresse e tudo o que faz mal ao coração. Aí, sim!

Cabeça e coração

A maneira de prevenir ou retardar o aparecimento de demências é seguir à risca as mesmas medidas para evitar as doenças cardiovasculares. Mas com rigor espartano. O cérebro não é tão bonzinho quanto o peito. Parece nunca perdoar.

Não vale ficar com a glicemia ligeiramente alta de vez em quando. Nem fazer menos do que 150 minutos de exercício aeróbico moderado por semana. Muito menos tolerar gorduras, como o colesterol, elevadas no sangue. Ah, por falar nisso, o sistema nervoso odeia uma pressão alta.   

No estudo Finger, realizado na Finlândia — e que deverá ser replicado na América Latina em breve —,  metade dos participantes com demência em fase inicial controlou todos esses fatores e aderiu 100% à dieta mediterrânea somada à atividade física aeróbica. Outra metade seguiu a vida como sempre quis — pagando depois o preço de a cognição derrapar mais ligeiro. 

Outra coisa: o cérebro de alguém com demência quase nunca tem uma encrenca só. Geralmente seus vasos dão pistas de que padecem também. Por isso, tem gente com placas de amiloides, genes alterados, TAU e que tais, sem manifestar a doença tão cedo quanto quem acumulou maus tratos à massa cinzenta — leia, anos e anos ficando acima do peso, alcoolismo, tabaco… 

Na verdade, existem vários outros fatores. "Há diferenças até entre os gêneros", lembra a neurologista americana Maria Carrillo, que supervisiona os estudos financiados ao redor do mundo pela Associação Internacional de Alzheimer. A entidade sem fins lucrativos já investiu 410 milhões de dólares em pesquisas, como aquelas para desenvolver compostos capazes de acusar o acúmulo de amiloide no cérebro em exames de imagem. Bem como iniciativas para incentivar a descoberta precoce. "E, nesse sentido, as mulheres preocupam: nelas, o diagnóstico é mais tardio e o desenrolar da doença, mais apressado", diz a médica.

Infecções tropicais também complicam a vida do cérebro e, lembre-se, o planeta abriga 1 bilhão de pessoas que tiveram, têm ou terão uma dessas doenças dos trópicos. Entre elas, o Chagas, mal que infelizmente nunca virou passado nos nossos livros de História. "Outro gatilho é a neurocisticercose, doença transmitida pelo consumo de água e alimentos contaminados com ovos de tênia", exemplifica o professor Caramelli. 

Não podemos nos esquecer da escolaridade. "Quantos mais anos o cérebro passa na escola, maior a sua reserva cognitiva", frisa Ricardo Nitrini. É como se os neurônios, estimulados a formar um monte de conexões entre si, se tornassem mais resilientes à TAU, às amiloides, aos vasinhos cerebrais prejudicados por hábitos pouco saudáveis.

Sem contar que, por dedução lógica, quem tem maior escolaridade lida melhor com as dificuldades iniciais de uma demência. "Esqueceu uma palavra? Encontra ligeiro um sinônimo", ilustra o professor.

Mas, pelo futuro de nossas cabeças, o ensino precisa ter qualidade, sem a criançada fazendo figuração em uma sala de aula onde faltam recursos humanos e materiais. Em estudo realizado no Hospital das Clínicas da USP, com mais de 300 participantes que passaram em média 9,5 anos em carteiras escolares, um terço ainda assim era analfabeto funcional, isto é, não conseguia escrever letras e números para organizar minimamente a própria vida em uma agenda.

O que acontecerá com essa gente quando a idade chegar e o cérebro cobrar a fatura de toda uma vida sem hábitos equilibrados?

A boa notícia é que, em outro trabalho, mencionado pela professora Lea Grinberg, adultos que durante três meses estudaram pra valer — três meses apenas! — já mostraram reações positivas na massa cinzenta, segundo exames de imagens. Desse modo, cai por terra a ideia de que, se não estudou na infância, nada resolverá mais tarde. O achado prova que é preciso investir na educação de adultos também. E, na minha opinião, reforça um merecido reconhecimento: sem valorizar seus professores, o Brasil está, ao pé da letra, condenado a ser um país de cabeças dementes.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.