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Blog da Lúcia Helena

Ninguém tem obesidade porque come demais, mas come demais por ter obesidade

Lúcia Helena

29/04/2019 20h41

Crédito: iStock

Nada pesa mais em quem tem obesidade do que um sentimento equivocado de culpa. Nada.

Portador de uma doença crônica das mais graves — ontem ouvi que ela já se divide em 60 classificações tamanha a sua complexidade e que está associada a 296 outras enfermidades —, é provável que esse ser humano sinta lá no fundo que carrega um problema de saúde bem maior do que a medida de sua cintura.

Mas ainda que tenha essa consciência ou intuição, será que  entende de fato o que está por trás do seu IMC elevado, o famoso índice de massa corporal? E — perdão, doutores — será que os próprios médicos realmente compreendem como funciona essa doença no interior das células de gordura, na intimidade do sistema nervoso, nas tramas das moléculas por trás da fome ou do gasto de energia? Será?

Pois então pegue o que você achava conhecer sobre quem vive com excesso de peso e vire de cabeça para baixo. Se me dessem duas linhas apenas para eu fazer o meu balanço do domingo passado, o primeiro dia do Congresso Europeu de Obesidade em Glasgow, na Escócia, só escreveria isso e bastaria.

E hoje, segundo dia de evento, foi o da apresentação mais esperada de todas, a dos resultados do Action IO, antes de sua publicação na revista Diabetes, Obesity and Metabolism. Trata-se da maior pesquisa de percepção sobre obesidade já realizada até o momento. Mostra o que passa pela cabeça de 14.500 pacientes com a doença, sendo 50% homens e 50% mulheres,  e pela mente de 2.800 profissionais de saúde de 11 países — Austrália, Chile, Itália, Israel, Japão, México, Arábia Saudita, Emirados Árabes, Reino Unido, Espanha e Coreia do Sul. 

O Brasil estaria dentro, pena que não aconteceu. Obedecendo a uma regra da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, o CONEP, que não permitiria a remuneração simbólica aos pacientes entrevistados — em torno de 50 reais  —, ficamos de fora. Mas o endocrinologista Walmir Coutinho, professor da PUC do Rio de Janeiro e ex-presidente da Federação Mundial de Obesidade, é um dos autores.

"Somente metade das pessoas com obesidade busca ajuda médica. E, entre aqueles que procuram apoio no consultório, apenas metade recebe um tratamento", diz o professor brasileiro. Feitas as contas, podemos deduzir que um quarto desses indivíduos acaba sendo tratado.  "São dados americanos, mas nada indica que seja tão diferente no Brasil", avisa Coutinho. 

Aliás, voltando ao estudo do momento, o Action IO, ele envolve países de cinco continentes e, no entanto, por mais que existam distâncias geográficas e diferenças culturais tremendas entre eles, a obesidade é percebida de um modo muito semelhante por todos. Quem diria, essa dor calada no peito, a de viver sendo apontado como obeso, é o que de alguma maneira nos une.

"É doença, mas a responsabilidade por ela é toda minha." Como assim?!

Os resultados do Action IO revelam  que 68% das pessoas com obesidade têm plena noção de que sofrem de uma doença crônica. E isso é verdade: mesmo que emagreçam, a obesidade as acompanhará a vida inteira. À primeira vista, até aqui, todos de acordo. Ora, entre os médicos, 88% compartilham dessa visão. Mesmo assim, sabendo que estão diante de alguém que tem uma doença, muitos deles não abordam o assunto durante a consulta. Faz sentido? Será que fariam o mesmo frente à frente com um hipertenso?

Se quer saber o motivo do silêncio, 71% deles deduzem que os pacientes com obesidade não têm o menor interesse em perder peso. Um preconceito grosseiro: só 7% desses pacientes não estão nem aí para os quilos a mais. O resto iria adorar receber alguma orientação.

Na verdade, uma boa parcela, ou 51%, dos pacientes que enfrentam o IMC nas alturas gostariam que seus médicos tomassem a iniciativa de falar sobre o assunto. E, nessa esperança encolhida, se frustram. Talvez você se pergunte por que então eles mesmos não puxam a conversa sobre como lidar com os ponteiros da balança e, aí,  a primeira resposta no ranking entrega a desolação: quem tem a doença obesidade acredita piamente ser a única criatura responsável pelo seu excesso de peso. 

"Ainda está impregnado no imaginário a ideia de que faltou ginástica ou que ela sempre comeu demais", lamenta o líder do Action IO, Ian Caterson, professor da Universidade de Sidney, na Austrália. "Quem tem obesidade acredita que se tivesse mais disciplina e força de vontade teria resolvido as coisas e o médico não tem o que fazer. Ele não tem como fechar sua boca, nem ir em seu lugar à academia."  De novo, errado. Bem errado. 

Ah, eu gostaria demais que minhas linhas de agora tivessem o poder de apagar anos e anos de outros textos que eu mesma escrevi, batendo nessa tecla, especialmente na cabeça de dois em cada dez brasileiros que penam com a obesidade.

A falta de diálogo, alimentada pela informação incorreta, faz com que o paciente, de acordo com o Action IO, leve em média seis longos anos para pedir socorro depois de ter iniciado sozinho uma luta inglória contra a balança. E talvez se sentindo um fracassado ao não resistir, vez ou outra, a uma comida mais calórica.

Não posso deixar de repetir aqui o que ouvi na véspera no mesmo congresso, na voz do médico Lee Kaplan, do Hospital Geral de Massachusetts, nos Estados Unidos: "Ninguém tem obesidade porque come demais, mas come demais porque tem obesidade." Não disse que era para virar velhas ideias de ponta-cabeça?

Ninguém tem facilidade para engordar. Quase todos têm uma dificuldade enorme para emagrecer. E isso é bem diferente.

"A fisiologia da obesidade só ficou conhecida há pouco tempo", avisou Kaplan e eu me apoio nisso para sentir algum alívio por não ter contado antes que essa é uma doença dominada por genes. Inúmeros genes à espreita. Sua função, em uma simplificação imensa, é  segurar todo o estoque de energia que o meu corpo e o seu corpo puderem conseguir. Arrisco incluí-lo, meu leitor, porque só a minoria não é assim e carrega em suas células o  gene da magreza — isso mesmo. Essa minoria ganhou uma mega-sena da genética. 

Na maioria da população, o gatilho — que, ok, nunca deve ser desprezado — pode até ser aquele chocolate a mais. "No entanto, de 80 a 85% dos mecanismos disparados a partir daí têm a ver com uma tendência genética  a segurar a energia.", fala Kaplan.  Ou seja, uma vez que você engorda,  ao perder peso o organismo esperneia. Ele não quer largar de jeito algum a gordura que um dia conquistou.

Toma, então,  duas atitudes covardes: diminuiu o seu metabolismo e aumenta a sua fome. Para ter ideia, quando a pessoa começa a fazer dieta, os níveis de grelina, hormônio do apetite, vão lá para o alto. Talvez o sujeito pense que a fome mais intensa é decorrente de ele estar comendo menos. Hmmmm, não é bem assim: "Um ano inteiro depois e os níveis de grelina chegam a estar ainda mais elevados do que no início da dieta", conta Kaplan. Portanto, ter obesidade é viver esfomeado. Afinal,  toda a química do organismo é orquestrada para aumentar o apetite. 

Isso explica — olhando novamente para o Action IO — por que 52% dos pacientes que procuram o médico  já estão quase jogando a toalha no chão e desistindo. É que, antes de atravessarem a porta do consultório, eles já fizeram em média quatro tentativas sérias, isto é, procurando seguir tudo à risca, de perder peso. Em vão.

Ninguém pode dizer que manter o peso é mais fácil do que emagrecer. Porque isso é mentira.

Segundo o Action IO, cerca de um quarto das pessoas que perderam menos de 5% do seu peso inicial conseguiu sustentar esse emagrecimento por três anos. É pouco, não?  Para 11% dos entrevistados ao redor do mundo, os quilos foram recuperados ou parcialmente recuperados até mais ligeiro, em um prazo menor do que um ano. E — atenção, atenção! — estamos falando de quem perdeu 5% dos quilos.

Se a gente focar naqueles que emagreceram 10% ou mais do peso inicial — por exemplo, aqueles que tinham 100 quilos e desceram para 90 ou menos—, só cinco em cada 100 indivíduos continuaram com a nova forma após um ano. Não, não é fácil. Porque o corpo quer seus pneus de volta. Exige.

Ninguém deveria alimentar expectativas fora da realidade

E o que mais existe é gente pedindo ao organismo com obesidade algo que ele não conseguirá entregar tão fácil. O Action IO nos conta que, em média, os pacientes tinham a meta de perder 16% do peso — mas sonhando em segredo eliminar  até 23% dos quilos, o que que considerariam, aí sim, o ideal. Isso é que é sonhar grande! O médico nessa história? Ele também pega pesado, recomendando uma média de perda de peso absurda de 17%, segundo a pesquisa.

Sinto informar: todos os estudos que encontro por aqui no congresso apontam que isso não é factível. "Aí mesmo é que paciente tem tudo para recuperar o  peso inicial depressa", explica ao blog o professor Caterson."Ou até engordar mais do que antes. Lembre-se que, depois da dieta, o organismo estará ainda mais lento e faminto. "Eis que aparece o efeito sanfona que, para a saúde, é ainda mais danoso. Enfim,  obesidade é doença ardilosa. 

A boa notícia é que, ao perder apenas de 5% a 10% do peso, todos os parâmetros de saúde do indivíduo que está obeso já melhoram um bocado. Talvez esse emagrecimento não o coloque nas passarelas, nem nas capas de revista. Mas será digno de uma vida longa, mais saudável, com menos culpa e viável.

Para isso, precisamos que os médicos brasileiros tenham mais do que 22 horas de aula sobre obesidade na faculdade, penso — já foi bem pior, antes era só uma horinha de aula sobre o tema.

Precisamos ainda que a população brasileira tenha acesso a medicamentos pela rede pública. Afinal, sem que isso faça o menor sentido, a obesidade é a única doença crônica grave para a qual o  nosso sistema de saúde não oferece medicação, seja cara ou barata, nova ou antiga —  o que reforça o equívoco  de que o sucesso ou insucesso está exclusivamente na força de vontade de quem sente o peso dessa condição.  Aliás, a receita mais prescrita pelos médicos são aqueles três tapinhas nas costas, falando para a gente caminhar mais. 

Principalmente, precisamos acabar com todas as nossas ilusões sobre a obesidade e falar sobre ela, de maneira crua e desnuda. É triste notar, pelos resultados do Action IO,  que cada ser humano com obesidade se sente isolado quando tem 650 milhões de pares pelo mundo. Estamos redondamente enganados na maneira como lidamos com toda essa gente.

Aviso importante: estou cobrindo o Congresso Europeu de Obesidade viajando a convite do laboratório Novo Nordisk, que patrocinou o Action IO.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.