Doença de Chagas vem com tudo: açaí ou não lavar frutas causam o problema?
Não posso começar este texto dizendo que a doença de Chagas voltou. Simplesmente pelo seguinte: o mal descrito pelo médico mineiro Carlos Chagas entre 1908 e 1909 nunca foi embora. Jamais ficou restrito aos livros de escola, onde você ainda menino ou menina leu sobre o inseto barbeiro que, ao picar pessoas vivendo em casas humildes de barro, transmitia o protozoário Trypanosoma cruzi, um parasita capaz de deixar o músculo cardíaco aumentado e flácido, sem um pingo de força para bater. Foi assim com João Boiadeiro, o primeiro brasileiro transplantado do coração, em 1968.
Aí você, que não vive em casa de barro, já saiu da escola faz um tempão e acha que essa história do primeiro transplante tem um quê nostálgico de homem pisando na Lua, pensa então que o problema não é contigo, certo? Errado.
Digo mais: além de a doença não ter sumido do nosso mapa, o barbeiro é bem democrático e pode picar qualquer um, sem distinção de saldo bancário, em áreas por onde sempre perambulou e perambula, como no Triângulo Mineiro e, para dar outro exemplo, na região de Ribeirão Preto, no interior paulista.
Hoje o Ministério da Saúde estima que existam de 1,9 milhão a 4,6 milhões de brasileiros infectados com o maldito tripanossoma. E eram cerca de 200 novos de casos por ano até há pouco, mas… Mas a incidência já aumentou quase 50% do ano passado para cá por causa de alimentos contaminados — fenômeno novo para nos deixar de cabelos em pé. A doença de Chagas vem com tudo, está esnobando até o inseto e, diferentemente dos tempos do João Boiadeiro, matando muito depressa. Às vezes, destruindo o coração em 48, 72 horas depois que seu dono, lá no Norte do país, por exemplo, resolve comer um açaí preparado artesanalmente.
E eu aposto: chegou a vez de você dizer que não come açaí, ameaçando desistir da leitura. Ou vai contar que só come aquele açaí na tigela do restaurante natureba — que, melhor eu ir logo acalmando, de fato não oferece perigo. A polpa que a gente encontra nesses estabelecimentos e em supermercados por todo o país costuma ser pasteurizada e, obrigatoriamente, é comercializada com o selo de inspeção da Vigilância Sanitária.
A questão alarmante é outra. Quem a levantou foi a cardiologista Dilma Souza: "O que dizer do surto de Chagas em junho passado, no Recife? As 75 pessoas diagnosticadas não tinham comido açaí, nem o barbeiro picaria tanta gente em um curto espaço de tempo." Para a médica, professora da Universidade Federal do Pará e presidente eleita da Sociedade Brasileira de Cardiologia em seu estado, o problema em Pernambuco foi causado após a ingestão de frutas sem lavar. Falta de educação básica, nem sempre seguimos à risca aquela ordem de pai ou de mãe: "já lavou?", perguntava o meu velho quando eu atacava a fruteira.
Na semana passada, o cardiologista Marcelo Queiroga, presidente eleito da Sociedade Brasileira de Cardiologia para todo o país, ouviu a preocupação de seus colegas durante o XXXIX Congresso Norte Nordeste de Cardiologia. "Precisamos ter como meta sensibilizar as autoridades públicas para orientar a população sobre a importância da higienização dos alimentos", ele me disse. "A quantidade de protozoários que a pessoa ingere quando a comida está contaminada é muito maior do que a transmitida pelo inseto e essa carga imensa na circulação faz a doença ser muito mais agressiva."
Chagas nunca foi uma condição suave, embora muitos portadores não sintam nada. O que bota medo é que essa aparente calmaria pode ser, mais dia, menos dia, quebrada. Explico. Na forma tradicional de transmissão, o inseto carrega o tripanossoma no intestino depois de, para o nosso azar, já ter se empanturrado do sangue de alguém ou de algum animal infectado. Aliás, falamos em barbeiro como se ele fosse um tipinho único, culpado por toda a encrenca. "Mas, só aqui no Pará são cerca de 130 espécies de insetos com potencial para transmitir o protozoário", diz Dilma Souza que, esqueci de contar, é uma das principais pesquisadoras da doença de Chagas no país.
Não é a picada, em si, que inocula o Trypanosoma cruzi. O "insetinho" é que não se segura e defeca enquanto suga o nosso sangue. Logo vem aquela coceira chata, você esfrega a unha e se lasca, arrastando as fezes cheias de protozoários para dentro do furo. Alguns dias depois, acontece a fase aguda inicial da doença, com febre e quebradeira que podem até passar por gripe.
Se nada for feito aí — existe medicação para tirar tripanossoma de circulação —, a doença vira crônica. Nessa fase, nem o eletro vai acusar nada de errado. Pode-se passar uma vida inteira assim, com um mal invisível. Mas parte das pessoas — e ninguém sabe dizer quem, nem por quê — vai evoluir para o que os médicos conhecem por fase crônica determinada. Isto é, de dez a trinta anos depois de habitar aquele corpo sem fazer estardalhaço, o raio do tripanossoma vai agredir o coração, a começar pelos seus nervos. Os batimentos destrambelham, além de o músculo inchar. O protozoário ataca também a musculatura de todo o tubo digestivo. Desastre.
Existe, ainda, a forma congênita. "O parasita pode ser transmitido de mãe para filho em qualquer trimestre da gestação ou até no parto", lembra Dilma Souza. No entanto, a forma que se torna pouco a pouco a mais frequente entre nós é mesmo a oral. "E ela é praticamente desconhecida da ciência, que até noutro dia acreditava que o tripanossoma não suportaria a acidez do estômago", conta a pesquisadora. Quer saber da pior? Ele não só resiste ao suco gástrico como faz dele limonada e parece até gostar. Depois, penetra pela parede estomacal e alcança a circulação sanguínea.
Geralmente, o inseto contamina frutas quase que por engano. Veja o caso do açaí: quatro ou cinco horas após a colheita, ele já começa a fermentar. Quanto isso acontece, libera gás carbônico, como nós ou qualquer outro bicho ao expirar. O barbeiro, que gosta mesmo é de sangue, ao detectar o gás interpreta que está diante de um banquete vampiresco. Não resiste à ideia de chupar um sangue e cai na máquina que tritura o açaí. Danou-se.
Passadas até três semanas de boa, a febre que surge nos consumidores desse açaí contaminado — ou de qualquer outro alimento com o sangue de um inseto esmagado ou, ainda, com suas fezes na casca. Essa febre não dura apenas uns três dias, como aquela após a picada. "Geralmente é bem mais alta e se prolonga por mais de uma semana", conta Dilma. "O quadro, então, confunde. Os médicos pensam ser malária, calazar, febre tifoide… Tudo, menos Chagas." Essa é outra batalha da médica: sem reconhecer a doença, ninguém toma os remédios que poderiam, logo no comecinho, livrar o organismo do tripanossoma.
O mais assustador acontece com até 5% dos infectados. Na transmissão oral, o parasita pode não esperar anos para exibir sua crueldade. Aliás, ele nem sequer espera uma semana. Em questão de horas, arrasa com as fibras musculares do coração. É morte na certa. E, se a gente comparar pessoas na mesma faixa etária, os homens são mais resistentes do que as mulheres. Nelas, a evolução é bem pior e a ciência ainda quer entender o por quê.
A saída é abrir o bico para que todos fiquem alertas — e abrir a torneira também. Lavar toda fruta muito bem. Deixar tudo de molho em solução de hipoclorito, ainda mais no Norte, no Nordeste e em todas as áreas do país onde o barbeiro carregado do tripanossoma é ameaça constante. Vale, especialmente no caso do açaí, o branqueamento, técnica de derramar água a 80 graus Celsius sobre os frutos e, na sequência, mergulhar tudo na água bem gelada. O tripanossoma não resiste ao choque térmico. Nem a cuidados de higiene que deveríamos ter aprendido de berço: "Já lavou?".
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