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Blog da Lúcia Helena

Para que ter paz na ceia? Argumentos para você polemizar com as uvas-passas

Lúcia Helena

24/12/2019 04h00

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Você deve saber que momento é esse: o peru já foi cortado e o tender, fatiado. Presentes, trocados. Começa a bater aquela sonolência à espera da sobremesa e o especial na tevê não ajuda. Se na sua família isso não acontece, trago verdades: você não sabe o que é uma ceia de Natal.

Depois da comilança, ainda mais em uma festa que cai bem no meio da semana, até Papai Noel ameaça perder o saco e fechar as pestanas. É chegada a hora de puxar um assunto para acordar do jovem à vovozinha. Trazer adrenalina, exaltar ânimos. Política? Que nada… Essa aí a gente já tem o ano inteiro, para que fazer a provocação de sempre se você pode ser original?  Aposte nas uvas-passas.

Diga que desta vez seus argumentos — sejam contra ou a favor — serão puramente científicos. Comece disfarçando suas boas (ou más) intenções, como quem diz que passas também são cultura, esperando que alguém as engula. E conte então que, muito antes de Jesus ser metido na História, há 2019 anos, as uvinhas secas já adoçavam as festas dos antigos egípcios e fenícios. 

Por aqui, há registros de uvas desidratadas desde que o país era só mato, lá por volta de 1532, quando as primeiras vinhas desembarcaram na capitania de São Vicente. Mas a fruta demorou a vingar e a sua versão seca nacional parece levar mais tempo ainda. Até hoje, apenas cerca de 2% das uvas colhidas no Brasil viram passas. 

Talvez você pense — ô, maldade… – que esses 2% são consumidos em uma única porção, de uma só vez. Quando? No Natal, claro.  Festa insaciável por passas, que  ousa misturar as nossas e até aquelas que importamos — a maioria vem mesmo de fora, principalmente do Chile, da Argentina e da Turquia —, claras, escuras e bronzeadas no arroz, no salpicão, nos pães, nos bolos, no livro inteiro de receitas natalinas. 

Nessa altura, depois de oferecer essa pitada de conhecimentos gerais sobre as uvas-passas, garanto: a sala da família já estará dividida em dois times. Na minha casa, por exemplo, vou para um lado e minha filha para outro sem hesitar. Não sobra ninguém para ser juiz. Afinal, quem aí sabe de alguém que diga: ""Passas? Tanto faz, tanto fez." Esse ser humano está para existir.

Se você for para o lado que defende a onipresença da uva-passa nas comemorações, saque da manga esta: de certa maneira, consumi-la é contribuir para a tão desejada sustentabilidade. Ora, veja o que aprendi com a Danise Medeiros Vieira, engenheira de alimentos paraibana:"Como as uvas, em geral, têm uma quantidade de água elevada, elas são frutas que se perdem com extrema facilidade", diz. "Para evitar o desperdício, uma saída é fazer a secagem." 

E foi isso o que ela testou, na Universidade Federal da Paraíba, em um trabalho realizado em parceria com a Embrapa Semi-Árido. A pesquisadora e seus colegas de equipe comparou seis variedades de uvas de mesa que dão duas vezes ao ano no Vale do São Francisco, em viticulturas nas regiões de Petrolina, em Pernambuco, e de Juazeiro, na Bahia. "Queria descobrir qual delas apresentaria maior quantidade de bioativos, substâncias que combatem os radicais livres no corpo, depois da desidratação", conta. 

Danise guarda a sete-chaves, até  pelo menos a publicacão do artigo, o nome da uva campeã, que manteve todas as suas qualidades para a saúde e muito sabor após a secagem. Mas fique com isso em mente: prestigiar a uva desidratada é uma forma de evitar a perda de frutas  e, quem sabe um dia, a passa do seu Natal virá do nosso brasileiríssimo Vale do São Francisco.

Existem secagens e secagens. A natural é feita sob o sol inclemente. Outro caminho é secar as uvas com um circulador de ar e uma temperatura controlada. Esse método tem algumas variações — Danise, por exemplo, usou uma tecnologia em que as frutas se espalham em bandejas por onde o ar circula retirando as moléculas de água. "O tempo e a temperatura precisam ser muito bem controlados para que nutrientes e outras moléculas benéficas não desapareçam no processo ", avisa. 

Mas, claro, se o líquido da fruta vai embora, é inevitável que leve junto os nutrientes que se dissolvem em água, ou seja, a vitamina C e aquelas do complexo B, por exemplo. Este é um ponto no placar da turma do contra: em 100 gramas da uva fresca, a gente tem 10,8 miligramas de vitamina C. Já a uva-passa, com muita boa vontade, preservará 3,3 miligramas desse micronutriente em um punhado de peso idêntico.

O restante, porém, é mantido durante o processo. Se for uma passa escura,  em especial, ela será uma mina de resveratrol, substância também famosa no vinho, que melhora a flexibilidade dos vasos sanguíneos e que está associada a um melhor controle da pressão arterial. 

As passas têm mais uma riqueza: polifenóis que previnem um sem-número de doenças por sua ação antioxidante, protegendo as células da degeneração. Fibras? Opa, elas fazem bonito! Contêm uns 3,4 gramas delas naquele bocado de 100 gramas, ao passo que o mesmo peso de uvas frescas oferece 0,6 grama.  Em matéria de ferro, também ganham de lavada: são 2 miligramas contra 0, 2 miligrama da fruta in natura, sempre comparando porções de 100 gramas.

Agora, se quer expulsá-la da festa, use a lógica: da mesma forma como concentra tudo isso, junta uma montanha de açúcar, quatro vezes mais do que a uva cheio de sumo, antes de esse líquido ir para os ares. Tanto que qualquer criatura, seguindo uma dieta saudável, não deveria consumir mais do que 1 colher de sopa por dia de uva-passa — e, na certa, muita ceia de Natal faz com que as pessoas ultrapassem esse limite.

Quer atormentá-las? Lembre que uma boa passa tem em média o triplo do valor calórico do que a uva em sua versão original, sempre comparando o mesmo peso. Ok, pode ser golpe baixo falar das calorias em uma das mais deliciosas festas do ano — com ou sem uva-passa, ninguém tira o sabor da mesa natalina, nem das discussões acaloradas entre familiares contra e pró sua doçura em tudo o quanto é prato.

Tirando ser açucarada e o valor calórico, do ponto de vista nutricional não há nada que desabone as passinhas. Mas, no desespero para não sair perdedor da discussão, se você é pelo fim delas no seu  Natal, apele gritando: uva-passa é ruim pra cachorro! E é mesmo.

O veterinário Pedro Lino, da Clínica Pontaporã, na capital paulista, explica que tanto a uva in natura quanto as passas são tremendamente tóxicas para os nossos amigos de quatro patas. "O risco é de insuficiência renal", alerta, com gravidade. "É uma loteria. Alguns cães podem comer um cacho inteiro e não acontecer nada. Outros roubam uma única uva-passa que estava sobrando em um prato esquecido ao seu alcance e passam muito mal." 

Nos cachorros, a uva-passa costuma provocar uma reação aguda. O animal começa a vomitar, fica apático, para de comer, começa a urinar demais e a desidratar. Às vezes, as reações ao consumo da uva-passa servem de gatilho para uma doença crônica nos rins. Bem, se houver cachorro em casa, quando alguém contar essa, há boas chances de o time das passas sair derrotado. Até o próximo Natal, pelo menos.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.