Para que ter paz na ceia? Argumentos para você polemizar com as uvas-passas
Você deve saber que momento é esse: o peru já foi cortado e o tender, fatiado. Presentes, trocados. Começa a bater aquela sonolência à espera da sobremesa e o especial na tevê não ajuda. Se na sua família isso não acontece, trago verdades: você não sabe o que é uma ceia de Natal.
Depois da comilança, ainda mais em uma festa que cai bem no meio da semana, até Papai Noel ameaça perder o saco e fechar as pestanas. É chegada a hora de puxar um assunto para acordar do jovem à vovozinha. Trazer adrenalina, exaltar ânimos. Política? Que nada… Essa aí a gente já tem o ano inteiro, para que fazer a provocação de sempre se você pode ser original? Aposte nas uvas-passas.
Diga que desta vez seus argumentos — sejam contra ou a favor — serão puramente científicos. Comece disfarçando suas boas (ou más) intenções, como quem diz que passas também são cultura, esperando que alguém as engula. E conte então que, muito antes de Jesus ser metido na História, há 2019 anos, as uvinhas secas já adoçavam as festas dos antigos egípcios e fenícios.
Por aqui, há registros de uvas desidratadas desde que o país era só mato, lá por volta de 1532, quando as primeiras vinhas desembarcaram na capitania de São Vicente. Mas a fruta demorou a vingar e a sua versão seca nacional parece levar mais tempo ainda. Até hoje, apenas cerca de 2% das uvas colhidas no Brasil viram passas.
Talvez você pense — ô, maldade… – que esses 2% são consumidos em uma única porção, de uma só vez. Quando? No Natal, claro. Festa insaciável por passas, que ousa misturar as nossas e até aquelas que importamos — a maioria vem mesmo de fora, principalmente do Chile, da Argentina e da Turquia —, claras, escuras e bronzeadas no arroz, no salpicão, nos pães, nos bolos, no livro inteiro de receitas natalinas.
Nessa altura, depois de oferecer essa pitada de conhecimentos gerais sobre as uvas-passas, garanto: a sala da família já estará dividida em dois times. Na minha casa, por exemplo, vou para um lado e minha filha para outro sem hesitar. Não sobra ninguém para ser juiz. Afinal, quem aí sabe de alguém que diga: ""Passas? Tanto faz, tanto fez." Esse ser humano está para existir.
Se você for para o lado que defende a onipresença da uva-passa nas comemorações, saque da manga esta: de certa maneira, consumi-la é contribuir para a tão desejada sustentabilidade. Ora, veja o que aprendi com a Danise Medeiros Vieira, engenheira de alimentos paraibana:"Como as uvas, em geral, têm uma quantidade de água elevada, elas são frutas que se perdem com extrema facilidade", diz. "Para evitar o desperdício, uma saída é fazer a secagem."
E foi isso o que ela testou, na Universidade Federal da Paraíba, em um trabalho realizado em parceria com a Embrapa Semi-Árido. A pesquisadora e seus colegas de equipe comparou seis variedades de uvas de mesa que dão duas vezes ao ano no Vale do São Francisco, em viticulturas nas regiões de Petrolina, em Pernambuco, e de Juazeiro, na Bahia. "Queria descobrir qual delas apresentaria maior quantidade de bioativos, substâncias que combatem os radicais livres no corpo, depois da desidratação", conta.
Danise guarda a sete-chaves, até pelo menos a publicacão do artigo, o nome da uva campeã, que manteve todas as suas qualidades para a saúde e muito sabor após a secagem. Mas fique com isso em mente: prestigiar a uva desidratada é uma forma de evitar a perda de frutas e, quem sabe um dia, a passa do seu Natal virá do nosso brasileiríssimo Vale do São Francisco.
Existem secagens e secagens. A natural é feita sob o sol inclemente. Outro caminho é secar as uvas com um circulador de ar e uma temperatura controlada. Esse método tem algumas variações — Danise, por exemplo, usou uma tecnologia em que as frutas se espalham em bandejas por onde o ar circula retirando as moléculas de água. "O tempo e a temperatura precisam ser muito bem controlados para que nutrientes e outras moléculas benéficas não desapareçam no processo ", avisa.
Mas, claro, se o líquido da fruta vai embora, é inevitável que leve junto os nutrientes que se dissolvem em água, ou seja, a vitamina C e aquelas do complexo B, por exemplo. Este é um ponto no placar da turma do contra: em 100 gramas da uva fresca, a gente tem 10,8 miligramas de vitamina C. Já a uva-passa, com muita boa vontade, preservará 3,3 miligramas desse micronutriente em um punhado de peso idêntico.
O restante, porém, é mantido durante o processo. Se for uma passa escura, em especial, ela será uma mina de resveratrol, substância também famosa no vinho, que melhora a flexibilidade dos vasos sanguíneos e que está associada a um melhor controle da pressão arterial.
As passas têm mais uma riqueza: polifenóis que previnem um sem-número de doenças por sua ação antioxidante, protegendo as células da degeneração. Fibras? Opa, elas fazem bonito! Contêm uns 3,4 gramas delas naquele bocado de 100 gramas, ao passo que o mesmo peso de uvas frescas oferece 0,6 grama. Em matéria de ferro, também ganham de lavada: são 2 miligramas contra 0, 2 miligrama da fruta in natura, sempre comparando porções de 100 gramas.
Agora, se quer expulsá-la da festa, use a lógica: da mesma forma como concentra tudo isso, junta uma montanha de açúcar, quatro vezes mais do que a uva cheio de sumo, antes de esse líquido ir para os ares. Tanto que qualquer criatura, seguindo uma dieta saudável, não deveria consumir mais do que 1 colher de sopa por dia de uva-passa — e, na certa, muita ceia de Natal faz com que as pessoas ultrapassem esse limite.
Quer atormentá-las? Lembre que uma boa passa tem em média o triplo do valor calórico do que a uva em sua versão original, sempre comparando o mesmo peso. Ok, pode ser golpe baixo falar das calorias em uma das mais deliciosas festas do ano — com ou sem uva-passa, ninguém tira o sabor da mesa natalina, nem das discussões acaloradas entre familiares contra e pró sua doçura em tudo o quanto é prato.
Tirando ser açucarada e o valor calórico, do ponto de vista nutricional não há nada que desabone as passinhas. Mas, no desespero para não sair perdedor da discussão, se você é pelo fim delas no seu Natal, apele gritando: uva-passa é ruim pra cachorro! E é mesmo.
O veterinário Pedro Lino, da Clínica Pontaporã, na capital paulista, explica que tanto a uva in natura quanto as passas são tremendamente tóxicas para os nossos amigos de quatro patas. "O risco é de insuficiência renal", alerta, com gravidade. "É uma loteria. Alguns cães podem comer um cacho inteiro e não acontecer nada. Outros roubam uma única uva-passa que estava sobrando em um prato esquecido ao seu alcance e passam muito mal."
Nos cachorros, a uva-passa costuma provocar uma reação aguda. O animal começa a vomitar, fica apático, para de comer, começa a urinar demais e a desidratar. Às vezes, as reações ao consumo da uva-passa servem de gatilho para uma doença crônica nos rins. Bem, se houver cachorro em casa, quando alguém contar essa, há boas chances de o time das passas sair derrotado. Até o próximo Natal, pelo menos.
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