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Blog da Lúcia Helena

Questione: por que seu médico nunca pede para você visitar o dentista?

Lúcia Helena

30/01/2020 04h00

iStock

Se a pessoa está acima do peso, o médico provavelmente irá encaminhá-la ao nutricionista. Se sentiu dor no peito, entre outros conselhos, ela ouvirá que seria bom achar um psicólogo para cuidar da ansiedade. Agora me diga, quem aí já foi mandado de qualquer consultório  direto para a cadeira do dentista? Aposto que só uns gatos pingados levantariam a mão. E, no entanto, a sua boca está relacionada a mais de 200 problemas que podem dar em algum ponto fora dela, entre a cabeça e os pés. Infelizmente, não sei quem inventou de tratá-la como se não fizesse parte do resto do corpo.

Foi ainda em 1984 que a dentista Rosely Cordon, que pertence ao Centro de Excelência em Prótese e Implante da Universidade de São Paulo, ficou cismada ao observar um paciente cuja raiz de um dente estava tomada de pus. "Se havia uma bactéria ali, como ela não iria parar no cérebro, no coração, na pontinha do dedão do pé?", questionava. "Será que não existiria um vaso sanguíneo por perto, capaz de carregá-la para outros cantos do corpo?", provocava, sabendo que não faltavam vasinhos e expressando uma inquietação que a acompanha até os dias de hoje, em que é coordenadora de Odontologia Integrativa  do projeto Mapa de Evidência Clínica da BIREME-OPAS-OMS para o Ministério da Saúde.

De fato, ouvindo-a soltar perguntas assim no ar, a gente vê que não tem o menor cabimento separar a saúde bucal do resto. Esse se tornou o assunto da palestra "A boca muito além dos dentes", que ela deu ontem, no primeiríssimo dia do Congresso Internacional de Odontologia de São Paulo, o CIOSP. Foi uma das doze apresentações de grandes especialistas que devem ocorrer, ao longo do evento, no espaço da  ABIMO, a associação que reúne a indústria de equipamentos médicos e odontológicos, a qual lançou a campanha "Sorrir muda tudo"— e o "tudo", no contexto, é mais do que uma referência ao sorriso que abre portas e que eleva a autoestima. Significa você por inteiro.

Ao conversar comigo, a professora Rosely Cordon já avisa que nem gosta do termo Odontologia Integrativa, porque ele não deixa de conter, em si, uma certa contradição: "O correto seria Saúde Integrativa, juntando todos os cuidados com o corpo e a mente." E lamenta que, apesar de anos levantando a bandeira do sorriso que, para o bem ou para o mal, afeta o corpo inteiro, a própria formação do dentista nas universidades ainda seja muito técnica. 

Quis entender melhor essa história e ouvi um bom exemplo: "Diante de uma cárie, o profissional geralmente vai pegar o seu motorzinho, limpar a lesão, fazer alguma espécie de reparo e pedir para o paciente só retornar dali a um semestre. Já o dentista que tem uma abordagem integrativa faria diferente", compara. "Ao ver o dente cariado, ele iria indagar como seria a alimentação. E, se ouvisse que o paciente não resiste a um docinho, tentaria fazê-lo lembrar em que momentos costumava ter vontade de comer algo açucarado. Então, se escutasse que o desejo surgia quando se sentia nervoso, provavelmente cogitaria a possibilidade de um quadro de estresse", diz ela. 

Nesse rumo da prosa, quando a consulta termina, o dentista com abordagem integrativa pode até pedir para o paciente marcar retorno em seis meses — mas com certeza , no nosso exemplo, recomendaria que fosse ao nutricionista e a um psicólogo nesse período. "Caso contrário, é alta a probabilidade de o paciente voltar com outra cárie", explica a professora Rosely. Ou seja, o dentista também precisa enxergar a boca aberta diante de si como parte de um todo.

A falta dessa perspectiva é até mais assustadora nos dias de hoje, quando a cárie parece mais controlada. Se os dentes permanecem mais saudáveis na infância e na adolescência em relação ao que era no passado, os problemas nas gengivas ainda correm soltos, mesmo na juventude. E aí é que está: os micro-organismos que inflamam esses tecidos são terríveis quando resolvem perambular por outros cantos. 

"Também devemos nos preocupar com os idosos", avisa a professora Rosely, de olho no fenômeno da polifarmácia, isto é, quando a pessoa precisa engolir vários remédios por dia. "Isso pode afetar o pH da boca e abrir caminho para problemas nos dentes." Portanto, senhor geriatra, valeria perguntar aos seus pacientes sêniores: qual foi a última vez que foi ao dentista? Porque, sim, os problemas na boca são uma silenciosa reação adversa. Além da polifarmácia, vale eu citar outras situações em que olhar para a boca é fundamental.

Quando há problemas cardiovasculares

Muita gente até já fica esperta com o risco de endocardite, ou seja, de uma inflamação no músculo cardíaco, quando se vai fazer um procedimento mais invasivo no dentista, como extrair um dente (que dó!) ou colocar um implante. Digo que fica esperta porque o profissional orienta para que o paciente tome antiobiótico na véspera da cirurgia a fim de evitar que bactérias da boca terminem alcançando o peito. 

O que poucos se dão conta, porém, é que no dia a dia uma gengiva que vive sangrando por falta de higiene fica despejando o tempo inteiro substâncias inflamatórias na corrente sanguínea. E, ao serem transportadas pelo sangue, elas incentivam a formação das terríveis placas nas artérias. Portanto, mandar comer menos gordura e eventualmente engolir estatina são medidas importantes, mas não bastam para resolver essa ameaça à saúde cardiovascular. O dentista precisa ser envolvido.

Cuidado extra com os pulmões

Se a imunidade cai por algum motivo, os micro-organismos presentes na boca podem ir  — novamente, pegando carona na corrente de sangue — até a área nobre dos pulmões. Ali, causam pneumonias. 

Rosely Cordon lembra, ainda, que é preciso tomar cuidado especial quando alguém está para fazer uma cirurgia com anestesia geral.  "Quando a boca não está das mais saudáveis, se o paciente precisa ser entubado, o próprio tubo arrasta com ele bactérias que, então, se aproximam dos pulmões." Em casos assim, a pessoa muitas vezes adoece na UTI e todos acham que pegou infecção hospitalar. Nada disso: pegou, por assim dizer, uma bactéria que já estava nela, bem em sua boca. Conclusão: se a data de enfrentar o bisturi está marcada,  ir ao dentista deve ser parte do pré-operatório.

A terrível conexão com a sinusite

A boca e o nariz são conectados por natureza. Então fica fácil imaginar o vaivém de micróbios. "Outro perigo importante", diz a professora Rosely, "é quando fazemos implantes na arcada superior, mais próximas desses seios". Como é preciso perfurar o osso, muitas vezes é como se o dentista cavasse um túnel por onde podem escapulir bandidos. "Já vi casos até de bacteremia", afirma a professora.

Para evitar o parto antes da hora

Estudos mostram que as moléculas inflamatórias descarregadas na circulação por uma boca mal cuidada podem induzir o parto antes de a gestação completar os nove meses.

O perigo maior nos diabéticos

O organismo de quem convive com essa doença, especialmente se ela está descontrolada, já vive inflamado. As bactérias abundantes em bocas com cáries, doenças nas gengivas e mal higienizadas só vão agravar o quadro e favorecer as sequelas do diabetes.

Mas a recíproca é verdadeira: se o paciente com diabetes não se cuida e vive com a glicemia nas alturas, do ponto de vista da boca é como se vivesse chupando bala. Ora, ora, açúcar é que não falta ali e ele não para de chegar pelo sangue. As bactérias da cárie, então, podem fazer a maior festa.

Da boca para os joelhos

Na verdade, da boca para qualquer articulação do corpo. "A doença periodontal agrava quadros de artrite", informa a professora Rosely. No caso, por causa das tais substâncias inflamatórias.

São apenas exemplos. Mas deixam claro o motivo de questionar:  por que o médico nunca encaminha ao dentista? Melhor  lembrar que a boca descuidada pode engolir os seus esforços em prol do paciente.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.