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Blog da Lúcia Helena

Estudo brasileiro mostra por que comer algas marinhas faz bem ao intestino

Lúcia Helena

06/02/2020 04h00

iStock

No começo, a ideia era apenas melhorar um aditivo natural, uma oferta do mar que a indústria de alimentos já aproveita faz tempo — em iogurtes, por exemplo — como um espessante capaz de melhorar a textura e um estabilizante poderoso, que, no caso, não deixa a parte mais pesada do produto ficar inteira decantada no fundo do pote. Esse aditivo que vem da natureza é a goma carragena ou simplesmente carragena. E sua fonte são algas marinhas.

Firmes e ao mesmo tempo maleáveis, as moléculas dessa substância espalhadas nas paredes celulares fazem com que as algas vermelhas Kappaphycus alvarezii, sua grande fonte na linha de produção de alimentos, consigam sobreviver ao vaivém das marés sem ficarem partidas em pedaços. Sim, para as algas, carregena é sinônimo de resistência, para não dizer resiliência. E para nós? 

Para nós, a carregena pode significar um intestino muito mais saudável, ao estimular o crescimento das bactérias benéficas que habitam esse órgão. Ao menos, essa é uma das principais conclusões de um estudo realizado em conjunto pela Embrapa Agroindústria de Alimentos com a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, a Unirio, e a Universidade Estadual de Campinas. 

Digo mais: novidade pra valer é descobrir que uma nova maneira de extrair essa goma das algas se mostra capaz de potencializar um bocado a multiplicação das bactérias intestinais do bem, a ponto de o processo estudado na Embrapa resultar em um depósito de patente no Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI).

Hoje, os grandes produtores de algas marinhas para consumo alimentar são os países do Sudeste Asiático, como a Indonésia e as Filipinas. O Brasil chegar a importar cerca de 2 toneladas de goma carregena por ano. "Ainda não temos uma produção nacional para a nossa demanda, se bem que o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis) autorizou o cultivo dessas algas Kappaphycus alvarezii em fazendas marinhas na faixa entre Ubatuba, no litoral norte paulista, e Paraty, no Rio", conta a engenheira de alimentos Cristina Takeiti, uma das líderes do estudo na Embrapa, onde vinha se dedicando a raízes, tubérculos, cereais… Mas seu olhar foi da terra para o mar. 

"Uma das características da goma carregena é ser bem pouco solúvel em água e isso, de certa maneira, vinha limitando seu uso na indústria, que só consegue usá-la em pequeníssima quantidade", me contou. Ela e seus colegas então pensaram que uma alternativa seria, em vez de usar o velho processo de refino, aplicar uma tecnologia de nome complicado para ouvidos leigos — eu, pelo menos, nunca tinha ouvido falar… Trata-se da extrusão termoplástica.

Quem descreveu essa tecnologia para que eu entendesse foi outro autor do trabalho, também da Embrapa, o engenheiro agrônomo Carlos Piler: "É um processo muito usado na fabricação de ração para animais ou, ainda, para a gente conseguir preservar os grãos inteiros na produção de alimentos integrais", diz. "Nele, usamos uma rosca sem fim, como se fosse um grande parafuso, ou seja, uma engrenagem mecânica que, no caso, vai espremendo a alga por um pequeno orifício. Um antigo  professor meu comparava a extrusão a um tubo de pasta de dente que você aperta forçando o produto a sair pelo buraco na ponta. Isso gera fricção mecânica e, ao mesmo tempo, calor, o que modifica as moléculas das algas."

Direto ao ponto: a tal extrusão termoplástica provoca alterações que afetam as propriedades físicas da goma carregena. Sim, ela se torna mais viscosa e mais solúvel. Problema inicial aparentemente resolvido. Mas não ficou só nisso — e eis por que razão resolvi falar do assunto. Explico.

Cristina Takeiti/Embrapa

Quem gostou mesmo das mudanças foram determinadas bactérias intestinais — e que bactérias! Em seu laboratório na Unicamp, a professora Maristela Nascimento avaliou o efeito da goma carragena na espécie Bifidobacterium Bb12. Ela não foi escolhida à toa. Em geral, fique sabendo, bactérias têm suas predileções em matéria de apetite. Umas crescem e aparecem quando os cientistas as colocam em caldos cheios de açúcares e vitaminas. Outras já preferem um sopão feito com peptídeos, ou seja, gostam mesmo é de proteína. Mas as tais Bifidobacterium Bb12, ai, ai.. Essas aí são exigentes demais. Torceriam o nariz, se tivessem nariz, para uma refeição qualquer. Eu diria que são gourmets das mais metidas. Mas a professora Cristina Takeiti opta pela linguagem elegante e cientificamente correta: "São o que chamamos de micro-organismo ouro. Por serem muito exigentes, se elas crescem em determinado caldo de cultura, sabemos que as demais bactérias benéficas, que são menos difíceis de agradar, também crescerão", justifica.

E assim começaram os testes. As bactérias ficaram 96 horas em caldos diferentes, alguns preparados com produtos de grandes marcas que já usavam a goma vinda das algas vermelhas e outros feitos com a carregena obtida por extrusão na Embrapa. Não deu em outra: as Bifidobacterium Bb12,  que fazem o intestino funcionar mais e melhor, se refestelaram mesmo foi com a segunda opção no cardápio. 

Isso abre a possibilidade de surgirem, amanhã ou depois, produtos industrializados, sim,  mais naturais e, do jeito como o consumidor antenado espera, com propriedades funcionais, elevando o consumo de fibras e garantindo uma microbiota intestinal bem equilibrada. É claro que, para deixar o status de aditivo alimentar e ser promovida a suplemento, a goma carregena ainda deverá passar por testes, incluindo uma avaliação rigososa de sua digestão por seres humanos em quantidades maiores.

Até lá, como lembra a professora Cristina Takeiti, vale prestigiar as algas no prato — por que não? O hábito ainda está um tanto distante da mesa do brasileiro, mas começa a ganhar força com o aparecimento de algiculturas, inclusive urbanas. Uma das algas mais interessantes para incluir na dieta é a Ulva fasciata, popularmente conhecida como alface do mar, produzida para consumo alimentar no Brasil pela startup D'Alga Aquicultura Urbana, tanto na versão fresca quanto na desidratada, que pode ser salpicada em receitas como saladas. 

Essa "alface" que nasce na água salgada tem um combo que faz a saúde de qualquer cidadão em terra firme agradecer: é rica em proteínas, vitaminas, minerais, compostos antioxidantes diversos e, claro, tem fibras de montão. Incluindo a bendita carregena, com seu efeito prebiótico. "O litoral do Brasil é um grande reservatório de possibilidades para uma alimentação mais saudável. A gente desconhece o que tem", diz Cristina Takeiti, torcendo pela popularização das algas, diretamente no prato ou como suplemento em produtos industrializados.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.