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Blog da Lúcia Helena

Estudo brasileiro: cereja alivia dores, melhora o sono, protege os vasos…

Lúcia Helena

03/03/2020 04h00

iStock

Apesar de a frutinha não ser tão comum no Brasil, geralmente só dando o ar de sua graça nas mesas de final do ano, podemos dizer que no interior de Minas Gerais, de 2017 para cá, deu cereja o ano inteiro. É que, desde então, o nutricionista Heitor Santos, pesquisador da Universidade Federal de Uberlândia, mais dois colegas dessa instituição e um co-autor americano da City University of New York, estudam seus benefícios. E agora o resultado de três anos de trabalho será publicado na revista científica Critical Reviews in Food Science and Nutrition, uma das mais relevantes da área.

Fiquei encafifada:  por que justamente a cereja? Foi de cara o que perguntei ao mineiríssimo Heitor Santos, que já conduziu estudos importantes sobre o brasileiro açaí. "Desde 2006 saem pesquisas sobre cerejas no campo da nutrição esportiva, todas com achados bem interessantes", me conta. "E a quantidade de evidências sobre as vantagens do seu consumo em diversas situações se multiplicou de lá para cá, chamando bastante a minha atenção." 

Mas tinha algo que incomodava o cientista: alguns desses trabalhos foram realizados por colegas ligados à indústria de suplementos, a qual não perdeu tempo para colocar produtos à base de cereja em seu portfólio. Até que ponto daria para confiar que ela faria assim tão bem? E outra: "Eu, particularmente, não sou fã da ideia de as pessoas engolindo cápsulas em vez da própria fruta", confessa. 

Por isso, resolveu revisar tudo o que tinha sido publicado sobre os frutos das cerejeiras, tintim por tintim, fazendo questão de comparar os dados daqueles trabalhos escritos por gente com conflitos de interesse — ou seja, com vínculo com o setor de suplementos alimentares — e por gente neutra como ele próprio, sem ligação com qualquer indústria. "E admito que os resultados eram bem compatíveis e coerentes. As cerejas são realmente ótimas."

Os benefícios são atribuídos às espécies Prunus cerasus, avium, fruticosa, mahaleb, serrulata  — é latim e tipos de cereja que não acabam mais! "Até eu me confundo", brinca Heitor Santos. "Mas vamos simplificar", ele me diz. E simplifica. Aprendo  que o Brasil costuma importar cerejas mais roxas e adocicadas, não à toa conhecidas lá fora por sweet cherries

Só que existe ainda um outro grupo, bem raro nas nossas bandas, que é o de cerejas mais vermelhas e azedas. Ah, mas estas…  Elas são um poço de antocianinas, componentes que são peça-chave de toda a história.

E aí, quantas cerejas eu preciso comer?

"Se for aquela cereja mais ácida e vermelhinha, todos os estudos apontam para uns 200 gramas para obter qualquer benefício", informa Heitor Santos. É uma bela cumbuca, imagino. "Agora, como as cerejas arroxeadas que achamos por aqui têm mais ou menos a metade da concentração das tais antocianinas, no caso delas a porção seria de 400 gramas, o que é complicado", admite. Verdade. Haja bolso e haja barriga para tanta cereja! 

Em países como os Estados Unidos, as pessoas já encontram o suco concentrado da fruta. Em apenas 30 mililitros dele, existe o equivalente a 90 a 110 unidades das cerejas vermelhas. "Facilita demais", diz o nosso pesquisador. Pois é, anote a tendência: ao menos lá fora, o suco de cereja é o novo suco de uva. E, pelo jeito, ele merece a fama de super saudável.

Depois do treino

Uma das ações mais reconhecidas das cerejas é na recuperação dos músculos após uma atividade física mais intensa. "Um efeito dos treinos extenuantes é levar o organismo a produzir muitas moléculas de radicais livres", explica Heitor Santos. "Extremamente reativas, elas agridem a membrana das fibras musculares e ainda agem no núcleo dessas células, induzindo a liberação de uma série de substâncias inflamatórias, como a interleucina 6, a 8 e outras."

Onde as cerejas entram no pós-treino: se você pudesse olhar uma fibra muscular bem de perto, observaria que as antocianinas da frutinha são antioxidantes de primeira, neutralizando parte do excesso de radicais. Mas não ficam só nisso: elas atenuam os danos nas membranas, ajudando a manter sua integridade. E, de quebra, vão agir direto no núcleo celular, modulando a produção das substâncias inflamatórias. Na prática, segundo Heitor Santos, isso se traduz em menos dor e uma recuperação melhor após treinos longos e  que exigem muitas contrações musculares, como os de corrida e triatlo, por exemplo.

O curioso é que outros componentes dos alimentos também são excelentes antioxidantes, como a clássica dobradinha das vitaminas C e E.  "A questão é que a gente precisa de um pouco de radicais livres e até mesmo dos danos causados por eles nas fibras musculares para ter o que chamamos de adaptação do organismo ao exercício e melhorar a forma física e a performance", diz Heitor Santos. "E doses mais elevadas dessas vitaminas podem cortar demais esse efeito, que no caso é desejável. Nesse aspecto, os estudos apontam que o suco de cereja regula os radicais e as substâncias inflamatórias, sem inibi-los em exagero."

Nas dores reumáticas

Tudo indica que o consumo regular de cerejas ou do seu suco aliviaria o tormento das doenças reumáticas. Atenção: ninguém está falando em cura, nem de substituição de remédios, mas em um efeito coadjuvante, uma forcinha extra para dar um chega-pra-lá no sofrer. 

Entre as pesquisas mencionadas na revisão sobre as cerejas, uma delas foi realizada na China com 633 indivíduos com gota. Durante dois dias apenas, eles foram convidados a consumir cerejas. A redução nos sintomas das crises foi, em média, de 35% em quem comeu as frutinhas e de 45% em quem tomou o suco concentrado, em relação aos pacientes que não consumiram nem o alimento, nem a bebida. Naqueles que comeram três porções de cerejas nas 48 horas — o máximo permitido no estudo — a redução dos sintomas foi de 61%.

Para Heitor Santos e seus colegas, isso acontece de novo por causa da interferência das antocianinas nas moléculas ligadas à inflamação e, no caso particular, naquelas que são conhecidas por COX — terríveis e dolorosas. Os estudos também indicaram uma diminuição na rigidez muscular que agravaria as dores.

"O interessante é que a gota tem a ver com o ácido úrico, substância que se desequilibra de vez com a ingestão excessiva de açúcar e toda fruta tem esse carboidrato, ainda mais o suco", observa. "Com a cereja não é diferente. Apesar disso,  o efeito antiinflamatório das antocianinas se sobressai."

Melhora do sono

Alguns alimentos fornecem melatonina, substância que ajuda a regular o ciclo do sono e da vígilia — em doses ínfimas, é bem verdade. A cereja é um deles. Mas não é só por isso que suas porções podem facilitar o adormecer. Uma vez dentro da massa cinzenta, as antocianinas da fruta ajudam a glândula pineal, bem no meio do cérebro, a aproveitar melhor certas substâncias que ela usa para produzir a nossa própria melatonina. Daí que essa função é otimizada com uns bons bocados da frutinha.

Vasos bem protegidos

Sempre que uma artéria sofre danos, ela libera no sangue substâncias que podem, digamos, dedurar esse estrago em exames simples. São os tais marcadores biológicos. Pois bem: a quantidade desses marcadores dedo-duros é, em média, menor entre consumidores regulares de cerejas. Tudo mais uma vez gira em torno de suas antocianinas, que reparam pequenas lesões no endotélio, o revestimento interno dos vasos, e ainda ajudam a quebrar a reação em cadeia que culmina na formação de placas.

E nós, os sem-cerejas?

Se não há cereja no mercado ou se o preço da fruta importada está pela hora da morte, o jeito é focar no que interessa: nas antocianinas. "É bom saborear diversas fontes para ter uma dieta variada. Até porque, mesmo sendo uma fruta deliciosa, qualquer um enjoaria de tanta cereja dia após dia", admite Heitor Santos.

Então é o seguinte: quem não tem cereja caça com açaí, ameixa, amora, mirtilo, figo, framboesa, uvas tintas com casca e tudo, maçãs e morangos. Uma bela salada de fruta. Heitor Santos incluiria mais uma, a romã, que ele também vem estudando e sobre a qual, em breve, vai publicar mais um de seus trabalhos. Alerta de spoiler: tudo indica que 50 mililitros do suco de romã rendem os mesmos benefícios atestados no suco cereja. 

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.