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Blog da Lúcia Helena

Treinos cognitivos melhoram a atenção e a memória de crianças e idosos

Lúcia Helena

05/03/2020 04h00

iStock

Onde estaria o meu prato? Os olhos percorreram a cozinha. E nada. Talvez eu o tivesse levado para a sala. Os olhos então escrutinaram o outro ambiente. E nada.  Pensei: Lúcia, Lúcia… Onde você anda com a cabeça, mulher de Deus? Voltei para a cozinha. Geladeira, será? Abri o refrigerador e nada. Lixo?! Não, eu seria maluca demais se tivesse jogado o meu almoço na lixeira — e com louça e tudo, pra piorar. Já aterrorizada — e se foi isso? — abri a tampa e mergulhei os olhos. Nada (ufa!). 

Por ironia, isso aconteceu um dia antes de eu falar com o professor Antonio Serafim, diretor-técnico de saúde do Serviço de Neuropsicologia e do Núcleo Forense do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP e — bom eu não me esquecer de acrescentar— também professor do Instituto de Psicologia da mesma universidade. Se você quer saber do que me lembro do ocorrido na véspera: eu me servi de comida na copa, o telefone tocou, saí para atender e na volta… Opa, onde estaria o meu prato? 

A sensação de branco durou o suficiente para eu ficar agitada. Percorri a casa. Nenhuma pista. Entrei em cômodos improváveis — leia, banheiros. No final, o prato estava na cozinha mesmo. Bem diante do meu nariz. Num cantinho ao lado do filtro — será que eu me preparava para pegar água quando ouvi o telefone  e não tenho a mais vaga lembrança disso? Assustador.

"Acho que também preciso de exercícios para a memória, professor", foi o que admiti.  Mas ele retrucou que provavelmente o meu problema não era exatamente de memorização —  ele seria falta de atenção. "Para que o seu cérebro se recorde direito de qualquer coisa, o primeiro passo é prestar atenção nela", me diz.  Parece lógico: quando alguém não faz ideia de onde botou as chaves é porque estava pensando na morte da bezerra na hora em que as guardou. Quem nunca?

Segundo o professor, o som do aparelho deve ter desviado o foco da minha cabeça na hora agá, bem quando eu iria memorizar o lugar do prato. Então, ok, corrijo: "Acho que preciso de exercícios para a atenção, professor". Atenção e memória seriam, grave bem, inseparáveis. No cérebro, a primeira possibilitaria a segunda. E é por causa dessa espécie de dependência uma da outra que ambas são trabalhadas na série Psicologia e Neurociências (Editora Manole), coordenada pelo professor Serafim.

A série é formada por manuais para profissionais de saúde e educadores habilitados, que os ensinam detalhadamente a aplicar treinos cognitivos em pacientes para estimular a atenção de crianças e adolescentes, a memória e o raciocínio de idosos e essas mesmas funções em gente com transtornos mentais – males que, no final das contas, podem embaralhar essas capacidades. 

O que eu esqueci pra valer foi a sutileza, porque logo no início da conversa disparei uma dúvida sincera: "Mas, professor, esse tipo de exercício funciona pra valer?".  Ele me garantiu que sim. Claro, ninguém aqui está falando daquele app que a gente baixa no celular e que promete deixar o cérebro tinindo. Apague esse tipo de coisa da cabeça. 

Nos manuais a que me refiro, os treinos englobam sequências específicas de exercícios para cada caso, todas muito bem encadeadas, baseadas em literatura científica da pesada. E, sim, boa parte foi testada na própria Universidade de São Paulo.

"Há pelo menos dez anos surgem cada vez mais evidências dos efeitos positivos desses treinos tanto para proteger o cérebro de perdas cognitivas quanto para reabilitá-lo em quem já apresenta uma disfunção", conta o professor. No primeiro caso, as sessões de exercícios cognitivos, que podem durar de 45 minutos a duas horas cada, são dirigidas a quem ainda não apresenta qualquer tipo de queixa, ou seja, quem acha que a cabeça vai bem e obrigada. 

Os exercícios são variações mais complexas de antigas tarefas usando lápis e papel, como repetir alguns traços, ler e decorar palavras, memorizar desenhos e afins. "Elas também funcionam, mas hoje existem testes computadorizados que tornam os desafios bem mais complexos, trabalhando ao mesmo tempo com a questão espacial, por exemplo. Desse modo, imagine  um desenho que precisa ser memorizado se deslocando na tela,  fazendo a atenção acompanhá-lo nessa mudança de lugar. Isso aumenta ainda mais o estímulo para o cérebro", explica.

Os treinos, quando destinados a proteger a massa cinzenta, servem para multiplicar as conexões entre os neurônios. "E isso, se não evita de vez que algum problema se instale, ao menos atrasa o seu aparecimento" , garante o professor Serafim. Porque é um fato: a partir dos 45, 50 anos começa um declínio celular na massa cinzenta de qualquer sujeito. "Inclusive, o volume cerebral sofre uma pequena redução nessa idade", revela. "Mas, evidentemente, nessa faixa etária isso ainda é sutil. Só fica mais acentuado a partir dos 60."  

Já os treinos de reabilitação, segundo o professor, têm outro objetivo.  Neles, os exercícios servem para ativar áreas do cérebro que ainda não estão comprometidas para que elas assumam funções das regiões danificadas, aquelas que não estão funcionando tão bem. Digamos que o cérebro têm sempre um plano B e que os exercícios cognitivos sejam capazes de acioná-los.

No Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo, o professor Serafim e seus colegas testaram os exercícios do manual para treinar a memória de idosos em 68 indivíduos sem queixas cognitivas. Eles foram divididos em dois grupos. Metade recebeu apenas algumas orientações de como melhorar a memória e a atenção. O restante foi submetido ao treinamento do livro por três meses. 

Passado esse período, os dois grupos apresentaram melhora. Mas ela foi bem maior naqueles que fizeram o treino. Eles aprimoraram pra valer a percepção visual, a captação de estímulos e a velocidade de processamento cerebral. Logo,incrementaram a tão desejada memória — artigo cobiçado por qualquer um de nós  em tempos nos quais a população vive cada vez mais.

Essa conclusão foi possível porque todos os participantes passaram por diversas avaliações antes do início do treino cognitivo, no final dos 90 dias e, ainda, uma terceira vez, algum tempo depois, para ver se os resultados tinham se mantido. A resposta, no caso, é sim.  "Mas, óbvio, não podemos esperar que três meses de treino resolvam a questão de vez. Por mais que exista uma longevidade nos efeitos do treino, a tendência é o declínio continuar adiante", avisa o professor Serafim. Claro, isso se a cabeça não voltar a malhar. Agora o professor  quer estudar o treino em idosos que já apresentam disfunções na memória. 

Também foi realizada uma investigação com crianças  que apresentavam déficit de atenção e outros transtornos capazes de resultar em problemas de conduta. O treinamento desenvolvido especialmente para elas melhorou demais o seu desempenho em tarefas que exigiam concentração. "Elas, inclusive, conseguiram dedicar mais tempo às atividades, o que foi confirmado por seus pais e professores", relata o professor Serafim.

Se profissionais de saúde e professores aprenderem a aplicar treinos cognitivos assim na criançada com o transtorno, com sequências de exercícios capazes de estimular as regiões do cérebro envolvidas na habilidade de focar, eles poderão se tornar uma alternativa não farmacológica de tratamento. E, fique atento, uma notícia assim tão boa que merece ficar na memória.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.