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Blog da Lúcia Helena

Teste do coronavírus: por que ele para de ser feito em caso de sintoma leve

Lúcia Helena

18/03/2020 15h20

iStock

O povo está revoltado: hospitais e clínicas estão se recusando a fazer o teste do coronavírus em quem não apresenta sintomas ou chega com o pedido médico em mãos, mas com febre, um pouco de tosse, quem sabe uma dor de cabeça e coriza, enfim, sintomas leves. E é preciso explicar direito essa história. Nesse sentido, tenho uma boa e uma má notícia para dar. Qual delas quer primeiro?

Vamos começar pela má: no ritmo como andam as coisas, se os testes não forem realizados com maior inteligência, sim, eles vão faltar para quem precisa mais, ou seja, para pessoas que, se não forem internadas e isoladas imediatamente, estarão ameaçando a própria vida e a dos outros. Gente com sintoma grave de muita falta de ar. Portanto, é inconsequente em dobro quem continua se expondo sem a menor necessidade, ou por pseudo-coragem, e ainda  ganha um bis no teste para arrematar.

A família coronavírus deu o seu recado em 2002 com a epidemia de SARS na China. E deu outro, dez anos depois no Oriente Médio, com a MERS — ambas, como a doença de agora, tirando completamente o fôlego dos pulmões. Até então, os coronavírus que invadiam o organismo humano, conhecidos desde os anos 1960 — antes disso, eram vírus que pareciam só perturbar outros animais — eram tidos como bobocas, causadores de um resfriado besta. Mas vírus são imprevisíveis. Ainda mais quando seu material genético contém umas 30 mil bases, que poderiam ser comparadas a 30 mil retalhos em uma colcha.

"Para ter ideia, a maioria dos vírus tem 5 mil, 8 mil bases", conta o médico Jorge Sampaio, consultor de microbiologia do Fleury Medicina e Saúde. Explico que diferença isso faz: esse tamanho todo facilita o fenômeno da recombinação. "Como se existissem vários pontos em que um desses vírus pudessem trocar um de seus retalhos com outro, se por acaso os dois se topam no mesmo organismo", explica o doutor Sampaio. Desse jeito, surge um terceiro vírus na jogada — assim nasceu o causador da covid-19. "E ninguém pode dizer que foi uma surpresa", lamenta o médico. Concordo.

Mesmo a SARS parecendo sob controle, os trabalhos apontavam que, mais dia, menos dia, essa colcha iria ganhar um retalho novo. E o tal controle iria se perder — uma mega-revisão de 2018 a partir de dezenas estudos sobre essa epidemia ecoou o mesmo alerta. Como dizem por aí, a gente que lutasse. Só que o mundo fez ouvidos moucos. Existiriam várias maneiras para isso, não vou me estender nelas, já que a ideia é focar nos testes. Mas uma delas seria justamente criar testes mais e mais rápidos e, digamos, tê-los de prontidão, na manga dos laboratórios. E aí — dói dizer — o Brasil tem uma desvantagem medonha. "Dependemos de outros países para praticamente todos os insumos de saúde", afirma Jorge Sampaio.

Máscaras, agulha, tubinhos — praticamente tudo, tudinho, bem mais de 90% do que você enxerga em um laboratório de análises clínicas vêm de fora.  Quase 100% dos kits para testes de toda e qualquer doença que possa passar pela sua cabeça. Por que com o teste do coronavírus seria diferente? "A Coreia do Sul conseguiu testar toda a população porque tem uma planta fabril enorme para insumos de saúde", observa Jorge Sampaio.

O objeto do desejo da vez é o swab e, claro, todos os reagentes e demais materiais necessários para o exame do coronavírus. Muita gente tem usado a expressão swab como se fosse sinônimo do teste para a covid-19. Na verdade, o swab é aquele cotonete gigante — para outras doenças, outros exames, ele pode ser um pincel — que colhe amostras de secreção. O nome em bom português não está na língua do povo porque uns acham feio, me contou Jorge Sampaio. Eu gostei e mato a sua curiosidade: swab, no nosso dicionário, seria zaragatoa.

Como é o teste e os falsos negativos

O tal swab é introduzido pelo nariz até fazer escala na nasofaringe, que seria a extremidade nasal da faringe, lá no alto, acima do céu da boca."O coronavírus tem predileção por se reproduzir ali", conta o médico. Então, a parada é estratégica. Quem está fazendo o teste gira a zaragatoa, opa!, o swab bem devagar para pegar o máximo de secreção possível.

E aqui aproveito para adiantar um pouco do motivo de segurarem  os testes de quem não tem sintoma ou apenas sintomas leves. Você vai entender: mesmo que o coronavírus esteja por lá, nessa fase assintomática ou quase assintomática ele se multiplica de maneira muito irregular. Pode se replicar bem pouco de manhã e, no mesmo dia, acelerar à tarde, voltando a baixar a bola na sequência. Ao contrário de quando há sintomas severos e o coronavírus está criando suas cópias a mil. Ou seja, aos apressados, há o risco de o teste dar um falso negativo pelo azar de ter sido feito na hora errada. "Esse resultado pode ser uma falsa segurança", afirma Jorge Sampaio. 

O swab é girado mais uma vez, devagarzinho, na garganta. Então segue mergulhado em uma solução de preservação até o laboratório. Ali, a primeira etapa é extrair o material genético. Reagentes separam todos os pedaços de DNA ou RNA que encontram ali dentro — da gente, do coronavírus se houver, de outros vírus, bactérias, o escambau.

A etapa seguinte é chamada de transcrição. Os pedaços de RNA, como os de eventuais coronavírus, são transformados em DNA, o que propriamente o exame consegue enxergar. Na sequência, esses pedaços são multiplicados em progressão geométrica — um vira dois, dois viram quatro, quatro viram oito e assim por diante. É preciso uma boa quantidade para o coronavírus, se estiver por ali, ser pego no flagra. 

Então vem a etapa da sonda, pequenos fragmentos, muito específicos como peças de um quebra-cabeças. "Peças que, no caso, só irão se encaixar perfeitamente no material genético do coronavírus", esclarece Jorge Sampaio. Só que — eu acho fascinante! — quando esse encaixe perfeito acontece, a sonda tem uma substância que a faz emitir luz. E são pontinhos luminosos que o equipamento registra. Quando o exame parece um céu estrelado, não há dúvida: resultado positivo.

Por que esperar para fazer o teste

Os pontos iluminados podem não aparecer ou não serem significativos para se bater o martelo quando o paciente ainda não apresenta sintomas. Então, mesmo que houvesse testes para todos, sem ameaça de faltar para ninguém como agora, o esforço de fazê-lo poderia ser em vão.

Uma boa notícia é que já existem pelo menos quatro indústrias prontas para entregar kits para o teste de coronavírus e atender a nossa demanda, aguardando a Anvisa — "inclusive de testes rápidos, capazes de dar a resposta em 15 minutos um deles, em 70 minutos outros", observa Jorge Sampaio. Será ótimo se chegarem e, daí, muita gente poderá ser testada. 

Mas o sufoco que estamos passando deixa de aprendizado a ressalva que não custa eu repetir: o resultado pode ser falso negativo em quem não tem sintoma. Então, não livra ninguém da medida número 1 em uma pandemia, que é o isolamento social. Até porque — dura realidade — quem não está contaminado na hora do almoço poderá se sentar à mesa para jantar com o vírus se perambular muito durante a tarde, contrariando as recomendações das autoridades de saúde.

Afaste a hipótese de ser uma gripe

Outra boa notícia é que dá para tranquilizar quem tem sintomas leves. "Ora, não estão faltando kits para o teste da gripe", lembra o doutor Jorge Sampaio. Portanto, quem está com febre, quebradeira e mais o sintoma da vez, o tal do medo, pode cogitar fazer esse outro exame.  Afinal, sim, pode ser gripe. "A maioria de quem fez o teste até agora estava gripado, o que faz o maior sentido  porque não podemos tirar da mente que estamos em pleno início da temporada anual do influenza", diz o médico. 

Contra esse aí, já sabe: além do isolamento que já está sendo feito, o melhor combate é a vacina. Ela deverá ser aplicada até em farmácias, para evitar que os idosos tenham de ir a pronto-socorros, locais que devem ficar de preferência para os doentes. E um bônus: é possível que, em uma reação cruzada, a imunidade para a gripe nos deixe ligeiramente mais fortalecidos para encarar o amaldiçoado corona. Tomara, disso ainda não dá para ter certeza.  No mínimo, quem se vacinar vai correr menos risco de se assustar à toa.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.