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Blog da Lúcia Helena

Nem vivo, nem morto, misterioso: conheça de perto o seu inimigo, o vírus

Lúcia Helena

19/03/2020 04h00

iStock: Este é o famoso coronavírus, que tem esse nome justamente por ter a aparência de uma coroa.

Certa vez, com uns 20 e poucos anos de idade, já contaminada pelo mal que tento controlar, a arrogância, soltei em um jantar na casa de colegas: "Fulano não consegue nem sequer explicar a diferença de um vírus para uma bactéria", como quem diz que o coitado não sabia nada da vida. Silêncio na sala. Como estava cercada de grandes profissionais, bem mais experientes do que eu, não estranhei aqueles segundos em que ficaram de boca fechada. E já tinha até esquecido o assunto quando, lá pelas tantas, um deles se aproximou, jeitão pensativo, coçando a cabeça. Era justo o Ricardo Bonalume Neto, um dos maiores jornalistas de ciência que este país já teve e que infelizmente morreu há dois anos. Ele queria saber qual seria a diferença de um vírus para uma bactéria. 

Pensei: sarcasmo. Mas que nada, ele falava a sério. O Bona era um mestre em outras praias da divulgação científica e hoje eu o deixaria sossegado: ninguém tem a obrigação de saber o que é um vírus na ponta da língua, se os próprios virologistas a enrolam para responder questões que beiram à filosofia: ele é vivo ou não é? Estava aqui na Terra bem antes do que as tais bactérias ou, muito pelo contrário, chegou por último e se deu bem?

Em tempos em que não se fala de outra coisa, vale a pena descrever um pouco do que se conhece e do que falta decifrar sobre o nosso inimigo. Afinal, é um tal de vírus, o corona, para lá, e coronavírus para cá… Então vamos começar lembrando que ninguém discute se uma bactéria, apesar de não passar de uma única célula, é vivinha da silva. Diria até que ela seria dona do seu nariz — se tivesse nariz… — , porque se vira muito bem transformando o alimento, que de alguma maneira consegue, em energia para viver. E, uma vez vivendo de boa, guarda em si todos os mecanismos para crescer e se multiplicar, sem depender dos outros.


Já os causadores da gripe, dos resfriados comuns, da paralisia infantil, do sarampo, da catapora, da rubéola, da caxumba, do herpes labial, das verrugas genitais, da febre amarela, da zika, da dengue, da raiva, do ebola, da Aids —ufa!,  essa lista iria longe porque quase 60% das doenças infecciosas que a gente conhece são consequência de um vírus aprontando — e, agora, da covid-19, bem, os culpados são feito saquinhos inertes com material genético dentro. Sem mais.

Partículas que não comem, não respiram, não… nada! Ou seja, não fazem parte do mundo dos vivos. Quer dizer, até que encontrem uma célula para, feito piratas, saquear. Olha aí então o furdúncio que podem causar.

O vírus é um tipinho minimalista

Considerado um dos maiores especialistas em coronavírus do país, o biólogo molecular Luiz Gustavo Bentim Góes, da Plataforma Científica Pasteur-USP, é quem dá a definição clássica: "Dizemos que o vírus é um parasita, porque sempre depende de algo. E esse algo é obrigatoriamente uma célula, na qual ele precisará entrar de algum jeito", informa. "É extremamente simples, formado por um DNA ou um RNA, envolto em uma cápsula de proteína chamada de capsídeo e, às vezes, por um envelope extra", completa.

A partir daí, é um sortido variado. "Tem vírus só com uma fita de DNA, outros com dois DNAs; vírus com um RNA, com dois, vírus com uma fita de DNA e outra de RNA…", conta o cientista. Mas, cá entre nós, é só isso: um pedaço de material genético bem embrulhado. Aí é que está: o que não é vivo não possui material genético, certo? Bela encruzilhada!

O fato é que, para todas as espécies, existem vírus capazes de lhes infernizar a vida. Há pelo menos uns 320 mil tipos infectando mamíferos e não se iluda: também existem vírus atazanando aves, roedores, anfíbios, répteis, peixes… E ainda os vírus que invadem plantas, os que se intrometem em amebas e até mesmo os que se apoderam de bactérias. Sim, imagine bactérias com virose. Na natureza, acontece de montão.

Uma vez dentro da célula de sua preferência — aquela em que ele consegue entrar — , o vírus toma conta do pedaço. Ou seja, a célula infectada larga tudo o que fazia e passa a existir em função de produzir cópias e mais cópias do invasor. Até literalmente explodir de tão cheia dessas réplicas, que logo invadem a vizinhança e segue o barco, a virose avança. Ah, curiosidade: o tal envelope extra que alguns vírus como o corona têm, feito uma sobrecapa, é um pedaço da membrana da célula hospedeira que ele, ao explodir, levou junto sem a menor cerimônia.

Se é vivo ou morto? Pergunto a Góes de que lado ele fica nessa discussão sem fim. "Fora da célula, ele decididamente não é vivo, já que não passa de partícula incapaz de fazer qualquer coisa", opina. "Dentro da célula, porém, ele se comporta como um ser vivo, inclusive produzindo proteínas para defendê-lo", completa, subindo no muro da ciência. 

Você pegou uma virose? Ó, vida, ó, tremendo azar…

O pesquisador lembra que tem vírus neste mundo em tudo o quanto é canto. "Um grande cientista americano diz que vivemos em uma nuvem deles", recorda. "De fato, respiramos milhões de partículas de vírus a cada instante e engolimos outras tantas". Bem, só em 1 mililitro da água do mar você encontra cerca de 1 milhão de partículas de vírus. E ora, ora, nada nos acontece, por quê? Resposta direta e reta: por mero acaso. Sim, acaso. Um vírus azarado é a nossa sorte. E a recíproca é verdadeira— para desgosto da humanidade, que sorte que deu esse coronavírus!

"Todo vírus se encaixa no receptor de uma célula específica e a imensa maioria nunca encontra essa célula", explica Góes. Imagine a série de eventos para o coronavírus dar no que deu!  "Ele estava em um morcego, onde não provocava nada. Até que esse morcego cruzou o caminho de outro animal silvestre, que provavelmente foi comido por um homem e finalmente esse coronavírus teve a oportunidade de encontrar a célula que ele conseguia abrir e na qual era capaz de se replicar", conta. A célula, no caso, do nosso sistema respiratório. Se ele tivesse encontrado um rato, não teria futuro.

Um jogo de ovo-ou-galinha

Quem veio primeiro na evolução? Esse é outro mistério. Alguns cientistas apostam que os vírus estavam aqui antes mesmo dos dinossauros e que há bilhões de anos eles se enfiaram em bactérias primitivas e deram origem ao núcleo delas. Dizem mais: que eles seriam nossos tataravôs e que parte do nosso genoma seria de DNA de vírus que nos infectaram nos primórdios dos tempos. 

Outros acham que eles são um retrocesso da natureza mesmo, aparecendo bem mais recentemente, fruto de uma célula qualquer que, por algum defeito no caminho da evolução, perdeu sua capacidade de se replicar. 

Quem estaria certo? "Essas discussões são ótimas, mas cá entre nós nunca iremos saber", diz Góes, colocando um ponto final. "Isso porque não existem fósseis de vírus, como de todas as outras espécies, para a gente estudar sua evolução."

E qual o aprendizado da ciência com essa pandemia?

Para Góes, um deles é bonito de ver: "Os centros de pesquisa do mundo inteiro estão trabalhando em conjunto pra valer, trocando informações sempre, sem aquela ideia de querer descobrir uma saída sozinhos, como se fosse uma competição. As revistas científicas estão publicando artigos depressa e deixando-os abertos para qualquer um ler. Isso é uma mudança e tanto no cenário da ciência", opina.

Outra lição é a necessidade de criar medidas para evitar o contato do homem com animais silvestres. Por exemplo, proibindo o comércio desses animais como alimento, o que a China ameaça fazer. "Claro, como em determinadas regiões desse país isso está muito entranhado na cultura, poderá continuar ocorrendo de maneira ilegal…", reconhece. No entanto, é  fundamental  que aconteça alguma forma de controle. "Os vírus emergentes, aqueles desconhecidos que surgem de hora para outra atormentando a saúde dos homens, costumam vir de animais silvestres", chama a atenção.

Um vírus emergente made in Brazil?

Como o foco do pesquisador são os morcegos, de onde veio o novo coronavírus, ele faz questão de alertar para o perigo dos desmatamentos. E dá uma ideia da situação. "Morcegos são grandes depositários de vírus que, neles, não fazem nada, mas que são tremendamente letais quando são transmitidos para outras espécies, como a humana", exemplifica. "Foi assim com o vírus ebola, com o coronavírus da SARS, com o novo coronavírus."

Existem, ele lembra, mais de 1.400 tipos de morcegos pelo planeta. Desses, 113 vivem na paz em nossa Mata Atlântica. E dezenas na Amazônia. Sempre que uma área verde desaparece, eles migram. Podem parar em centros urbanos. Ou simplesmente se aproximar do homem com a motosserra. Imagine um vírus até então azarado, se a sua sorte vira com essa aproximação…  Não é absurdo cogitar uma nova saia justa mundial sendo disparada daqui. Ou de qualquer canto em que a gente não deixe a natureza quieta na dela. Ado, ado, cada um no seu quadrado — não deveria ser assim?

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.