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Blog da Lúcia Helena

Covid-19 só nos chama a atenção: precisamos falar da ameaça de AVC

Lúcia Helena

28/04/2020 04h00

iStock

Provocar uma inflamação feroz, capaz de encher os pulmões de líquido e sequestrar completamente o fôlego, já me parecia bastante cruel.  O novo coranavírus nem precisava fazer mais maldade alguma.  Mas a cada semana descobrimos que ele pode ser ainda mais devastador. 

Às vezes, arrasa os rins dos doentes, assim como pode prejudicar o coração. Seu golpe mais recente, porém, será descrito em uma carta com publicação prevista para amanhã, 29, no New England Journal of Medicine. Ela foi enviada por médicos do Hospital Mount Sinai em Nova York, nos Estados Unidos, e diz o seguinte: é bem possível que o coronavírus provoque AVC, o acidente vascular cerebral, em pacientes jovens . Por jovens, leia-se na faixa dos 30 e dos 40 anos, não mais do que 50.

Isso foi observado em pessoas contaminadas, mas que estavam com quadros leves e isoladas de boa até que…  Ou, pior, em gente que nem sentia qualquer sintoma de covid-19 e que, na verdade, só foi diagnosticada porque os neurocirurgiões, ressabiados com o volume anormal de episódios de AVC, pediram o teste. Foram cinco casos apenas, mas em um curto espaço de tempo. E, depois de levantada essa lebre, surgiram outros relatos semelhantes.

A única certeza, por enquanto, é a de que os indivíduos infectados pelo coronavírus formam coágulos nas artérias com uma facilidade estonteante e esses trombos sempre podem entupir um vaso na cabeça. Agora a ciência se aprofunda até o nível das moléculas para investigar se eles apareceriam com um empurrãozinho do vírus diretamente ou se fariam parte da violenta reação do organismo à sua presença. Ovo ou galinha, o fato mais assustador é eles parecem brotar do nada em quem, muitas vezes, nem desconfiava estar com o vírus até a má surpresa de um AVC. O que me faz lembrar…

Antes de os casos da infecção pelo novo coronavírus explodirem no país e o distanciamento social ser decretado, no final da primeira quinzena de março eu participei do Global Stroke Alliance, no Rio de Janeiro, o encontro de especialistas do mundo inteiro para discutir não só as novidades da Medicina, mas políticas públicas para a prevenção e o atendimento dos casos de AVC. Se o coronavírus estava entre nós, não sei — espero que todos tenham retornado bem para casa. Mas já não dava para ignorar a ameaça do vírus entre uma palestra e outra.

Em cada canto, um álcool em gel e um cartaz reforçando os cuidados de higiene, sem contar algumas ausências entre os convidados internacionais por conta da covid-19 que grassava na Europa. E o assunto da doença veio logo à tona no café que tomei entrevistando o neurologista cearense Francisco Mont'Alverne, presidente da Sociedade Brasileira de Neurorradiologia. Formado na USP de Ribeirão Preto, interior paulista, o médico passou pelo menos oito anos entre o Brasil e a França, onde se especializou e fez o seu doutorado. Hoje está no Hospital Geral de Fortaleza, centro de referência que atende o impressionante número de 2 mil pacientes com AVC por ano.

"Está todo mundo em pânico com essa história de coronavírus", soltou na ocasião Mont'Alverne, observando o clima ao nosso redor. "Sem desmerecer uma infecção que se espalha com uma velocidade incrível e que afetará as populações mais vulneráveis, ouso dizer que essa é uma onda que irá passar, enquanto os casos de AVC continuarão aumentando. E precisamos falar mais deles também, porque as pessoas não fazem muita ideia do problema", opinou, claro que sem imaginar que, pouco mais de um mês depois, os dois temas se cruzariam como agora.

De fato, precisamos alertar mais sobre o AVC, em tempos de covid-19 ou não. Quando falamos em doenças cardiovasculares, as pessoas parecem só ouvir o significado de parte dessa expressão — guardam o "cárdio", o coração, e se esquecem que entre os males vasculares também estão as hemorragias no cérebro, quando um vaso estoura ali — elas representam cerca de 15% dos AVCs — e as interrupções na circulação ou isquemias, quando um de seus vasos é bloqueado por um coágulo e os neurônios morrem sufocados, sem o abastecimento de oxigênio.

Esses quadros, os de AVC isquêmico como o de alguns pacientes com coronavírus, são de longe a maioria. Sem um socorro rápido,  de preferência na primeiríssima hora  após o acidente no vaso cerebral, as vítimas morrem ou — o que é triste demais — amargam sequelas para o resto da existência. Elas variam conforme a área da massa cinzenta que foi para o espaço.

Qual é o tamanho e quem são as vítimas da encrenca

Os acidentes vasculares cerebrais são muito mais frequentes do que a gente imagina. Muito mesmo. A cada 4 segundos, um americano sofre um AVC. A mesma coisa acontece com um brasileiro a cada 2 minutos. Feitas as contas, uma em cada quatro pessoas no planeta tiveram ou terão o problema que, nos sobreviventes, deixa limitações profundas — de movimento, de linguagem, de autonomia — quando os médicos não conseguem reestabelecer o fluxo no vaso comprometido só porque entraram tarde demais na jogada.

"Ora, não entendo como um problema tão grave não tenha uma bela campanha de prevenção. Eu mesmo  fui lutar contra o AVC correndo 10 quilômetros nesta manhã", me disse Mont'Alverne.  Sim, ao lado da alimentação equilibrada, o combate ao sedentarismo é mandatório para afastar o risco. Na realidade, esses são hábitos que deveriam ser cultivados desde a infância. Isso porque a prevalência maior de AVC em pessoas acima de 65 no Brasil — e de 75 anos na Europa e nos Estados Unidos— geralmente tem a ver com o efeito cumulativo de estragos nos vasos ao longo de uma vida inteira.

"Quem não se cuidou desde cedo corre um risco bem maior de pagar essa fatura mais tarde. Mas, na realidade, o AVC pode acontecer em qualquer idade,  até mesmo em crianças e em adolescentes, embora seja mais raro. Nelas, seria provocado por lesões, por infecções…", esclarece o médico Pedro Magalhães, da Clínica Neurológica, em Joinville, Santa Catarina. Ele foi outro palestrante do evento e se juntou a nós no café-entrevista. Nos adultos, os fatores mais comuns por trás são diabetes, colesterol nas alturas, obesidade e hipertensão.

Portanto, ligando a conversa antiga com o momento atual, o mais espantoso na associação da covid-19 com o AVC não é a idade precoce das vítimas e, sim, entender o motivo por que o vírus ou a reação do organismo infectado provocaria mais trombos nessa faixa etária do que em qualquer outra. Mas um AVC em jovens nunca foi impossível antes da chegada do coronavírus. Contrariando o senso comum, um AVC nunca teve idade. 

Como reconhecer os sinais

Justamente por achar que AVC é sempre coisa de gente madura somada à ideia equivocada de que não há o que fazer, as pessoas não valorizam os sinais do problema. Perdem um tempo danado. Pense o seguinte: se uma área do seu cérebro deixa de ser irrigada de sangue e, logo, morre, alguma função se perde junto. De uma hora para outra, o rosto pode ficar assimétrico ou um lado do corpo pode perder completamente a força. Ou, ainda, pode surgir uma dificuldade para pronunciar as palavras, sem contar a confusão mental. Aliás, essa é uma diferença desfavorável em relação ao infarto: geralmente, a vítima de AVC não consegue pedir socorro sozinha, pegando o telefone. Ela depende que alguém de fora perceba algo muito estranho nela.

Francisco Mont'Alverne ensina um teste simples: basta a gente se lembrar da sigla SAMU. O "s" seria de sorriso: "Peça para a pessoa sorrir e note se o rosto está torto para um lado", diz. Já o "a" é de abraço: "Queira também um abraço. Repare então se um dos braços não está mais fraco, caindo", completa o doutor. O "m" é de música e a sugestão é pedir que o outro cantarole uma canção infantil qualquer. Faça isso para observar se ele consegue se recordar da letra e articular as palavras. O "u"… Bem, respeite a letra "u"' porque ela é de urgência.

Um único desses sintomas indica uma alta chance de ser um AVC. Dois sintomas ou mais? É quase certo. E isso aciona o cronômetro. Os médicos falam em golden hour, a hora de ouro. "Se for socorrido na primeira hora, não importa o tamanho do AVC, ele provavelmente não deixará sequelas", avisa Pedro Magalhães.

Existe, sim, tratamento

Faz toda a diferença buscar um centro de referência em AVC e correr para lá. O site da Rede Brasil AVC, por exemplo, informa aquele que está a um raio de 100 quilômetros de distância. Ou a saída é chamar pela ambulância do Samu que deve saber localizá-los. "Os centros de referência sabem o passo a passo de tudo o que precisa ser realizado", diz Mont'Alverne.  E Pedro Magalhães logo completa: "Até mesmo quando o acidente é grave e envolve uma grande artéria, se tudo for feito do jeito certo e no tempo certo, há 50% de chance de a pessoa voltar à vida normal".

Nos AVCs isquêmicos, a maioria, os médicos têm aproximadamente quatro horas para lançar mão de drogas capazes de dissolver o trombo que estava bloqueando a circulação no cérebro. "O problema é quando esse coágulo é muito grande. Aí, elas não conseguem derreter tudo, limpando o caminho para o sangue voltar a passar", lamenta Mont'Alverne.

É então que entra a trombectomia, que pode ser feita nas primeiras 24 horas — mas, óbvio, melhor que o procedimento seja realizado bem antes disso. Uma das técnicas é subir por meio de um catéter um stent até o cérebro. Ele  penetra no coágulo para, três ou cinco minutos depois, quando  já está bem preso, arrastá-lo com delicadeza feito um saca-rolhas.  Funciona bem quando o coágulo é fresco, cheio de glóbulos vermelhos.  Agora, se ele já está mais borrachudo e endurecido, sem deixar nem sequer o stent entrar, os médicos usam outro dispositivo, capaz de aspirar o obstáculo — técnica que, por sua vez, não seria indicada para o coágulo fresco, sob o risco de quebrá-lo. De um ou de outro jeito, porém, é possível liberar a passagem.

No evento, cientistas de vários centros brasileiros comentaram os resultados do estudo Resilient, feito com 211 pacientes, comparando a eficácia da trombectomia com não fazer nada. Obviamente, ela ganhou disparado, mas por enquanto só está disponível na rede privada. Os autores, porém, querem que o tratamento aterrise ligeiro nos hospitais públicos, fazendo uma conta simples: hoje, no Brasil, apenas 30% dos custos com um paciente com AVC são gastos no período de internação. Os outros 70% seriam para tratar as sequelas, um dinheiro que seria na maior parte economizado com a trombectomia. 

Preciso dizer que as tais drogas trombolíticas, que derretem coágulos, levaram nada menos do que 17 anos para serem usadas em todos os hospitais do país, enquanto os AVCs  continuaram correndo solto.  Tomara que essa espera não se repita para os dispositivos que puxam ou aspiram os coágulos. E que as pessoas passem a conhecer mais o assunto para evitar outra perda de tempo — aquela para pedir socorro. Afinal, a cada minuto após um AVC, o cérebro perde nada menos do que 2 milhões de neurônios. Dá para imaginar o que acontece se fica horas nesse apuro, sem ser feito nada? Uma perda irreparável.

Observação: em  nome da trasnparência, aviso que viajei para a cobertura do Global Stroke Alliance a convite da Medtronic que, no entanto, não teve qualquer interferência nesta pauta.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.