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Blog da Lúcia Helena

Por que procurar pelo coronavírus no esgoto pode fazer uma boa diferença

Lúcia Helena

30/04/2020 04h00

Marina Saraiva/Fiocruz

Em uma guerra que, às vésperas de completar seis meses, já deixou mais de 230 mil mortos pelo mundo e provocou 5,5 mil baixas no Brasil só até ontem, a estratégia é fundamental.  Sem ela, a saúde fatalmente entrará em colapso fazendo todos se renderem por não terem mais como lutar. E estratégia inclui, claro, espionar o inimigo. Tarefa que não é simples quando ele passa despercebido ou disfarçado de resfriado em cerca de oito em cada dez indivíduos infectados. É agindo como um agente infiltrado que o novo coronavírus vai ganhando território, atacando pessoas de modo súbito, deixando seu rastro de morte e famílias arrasadas. E daí? E daí que cientistas arregaçam as mangas e topam até mexer com o esgoto para rastrear o Sars-CoV-2 e salvar vidas — o que realmente interessa.

Talvez você tenha escutado a notícia, há dois dias, de que a Fiocruz fechou uma parceria com a prefeitura de Niterói para monitorar o esgoto de 12 regiões do município do Rio de Janeiro. Mas não sei se ficaram claros alguns pontos. Primeiro: fazer isso não é tão simples. Ao contrário, é uma façanha. Segundo: esse é um jeito de apontar aquelas regiões em que podem existir muitas pessoas contaminadas, as quais talvez nem saibam disso enquanto saem espalhando a doença. Terceiro,o método não é bom apenas para os países em desenvolvimento. 

Percebendo que mais dia, menos dia, a covid-19 chegaria por lá, a Holanda fez o quê? Foi olhar para a sua… sujeira. "Desse modo, os holandeses se anteciparam. Porque viram as partículas virais aumentarem em determinado ponto de esgoto antes mesmo de o primeiro caso ser registrado no país. Quando aconteceu, eles já tinham idéia de onde apareceria", conta a engenheira sanitarista Camille Mannarino, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, que faz parte da fundação.

A sugestão de que a Fiocruz examinasse o esgoto bruto da cidade  veio da Secretaria do Meio Ambiente de Niterói, justamente depois que tomaram conhecimento de iniciativas semelhantes e bem sucedidas não só na Holanda, mas na China, na Austrália e na França. 

"Só que uma coisa é quando você busca um vírus no sangue, na urina ou até mesmo nas fezes de uma pessoa doente. A concentração que você encontrará ali é muito maior do que a da rede de esgoto, onde tudo se dilui",  explicou Camille. Sabe aquela história de achar agulha no palheiro? É procurar rastros do coronavírus na imundície. Para Camille Mannarino, a sorte é que a equipe de sanitaristas aceitou o desafio ao lado do pessoal do Laboratório de Virologia Comparada e Ambiental. "Eles têm 15 anos de experiência em flagrar a presença de vírus a partir de amostras do meio ambiente", diz.

O primeiro passo foi definir qual metodologia funcionaria  melhor. "Afinal, o coronavírus é completamente diferente de um vírus da hepatite ou de um rotavírus, que já conhecemos bem", diz a cientista. A primeira coleta foi realizada há duas semanas, exatamente no dia 15 de abril. E então a equipe da Fiocruz notou que dava mais certo a dobradinha de fazer, primeiro, uma ultra-centrifugação do material para, depois, realizar o exame de RT-PCR, capaz de acusar o material genético do famigerado.

"A centrifugação é necessária porque ajuda a limpar a amostra. Afinal, ela vem com milhares de coisas — outros vírus, materiais orgânicos, compostos tóxicos… Tudo isso dificulta a busca do coronavírus", explica Camille. Até o momento, foram realizadas três coletas — além daquela primeira, uma no dia 22 e outra anteontem. "As duas últimas ainda estão sendo processadas. Mas o resultado da primeira foi animador', diz a engenheira sanitarista. Ela diz isso porque, entre as 12 amostras que englobam redes coletoras de esgoto, estações de tratamento e pontos de descarte hospitalar, os cientistas da Fiocruz encontraram fragmentos do coronavírus em cinco. E por que isso seria uma boa notícia? "Essas cinco correspondiam às regiões do município com maior número de casos notificados. Não é coincidência. Isso quer dizer que esse tipo de monitoramento pode mesmo revelar por onde o vírus está se disseminando", responde.

Será possível, desse modo, reforçar medidas de prevenção nas regiões em que o Sars-CoV-2 começar a aparecer no esgoto e, principalmente, preparar as unidades de saúde para a demanda de pacientes nesses locais. "É especialmente importante fazer uma vigilância nas comunidades, onde há muita aglomeração de pessoas", opina Camille.

Na impossibilidade de sair testando todo mundo, esse seria um caminho definir áreas mais problemáticas da cidade, tentando conter a covid-19. Mas o país não é Niterói, onde até as comunidades contam com esgoto — a nossa realidade é que 20% da população não contam com uma rede coletora. "Aí fica impossível fazer um monitoramento parecido", lamenta Camille.  E nem é só isso, vamos parar para pensar: se não há nem sequer esgoto, esses indivíduos ficam sujeitos a água e alimentos contaminados. Daí que pegam outras infecções e, se encontram um coronavírus pela frente, já estão com a saúde abalada por outras mazelas. Duro demais.

O esgoto, então, pode transmitir a covid-19?

É capaz de a pergunta passar pela cabeça. "Seria muito improvável", afirma Camille Mannarino. "Esse vírus é recoberto por um envelope gorduroso e o esgoto contém uma boa concentração de sabão e outros detergentes que vão parar no ralo de nossas casas", exemplifica a pesquisadora. "Eles destroem essa espécie de invólucro, sem a qual o vírus não consegue infectar uma célula. Dizemos que ele deixa de ser viável." Já as fezes… Tudo indica que, sim, elas podem conter o vírus inteirinho da silva.

O coronavírus na privada

O tema ainda é bastante controverso. Apesar de a covid-19 acometer principalmente os pulmões, diversos estudos apontam sintomas gastrointestinais — e a revista Nature Reviews Gastroenterology & Hepatology publicou uma revisão deles. Na China, por exemplo, cientistas fizeram o famoso teste com swab — aquela espécie de cotonete ou pincel para coletar secreções — tanto no nariz quanto no reto, a porção final do intestino, de crianças de 2 meses a jovens de 15 anos. E não deu outra: na maioria, o vírus apareceu nos dois lugares. E, não raro, deixava de ser flagrado no nariz, mas ainda era eliminado por baixo.

Também na China, outro trabalho com 1.099 adultos encontrou o coronavírus nas fezes de 29% deles. Ou seja, embora não exista registro de contaminação por essa via, que o coronavírus pode sair por ali, ah, ele pode. O que, muito cá entre nós, não é espantoso. Nem nos impõe qualquer hábito diferente, partindo do princípio de que nunca foi uma boa ideia fazer o número 2 e não lavar as mãos. Isso sempre esteve fora de cogitação, certo?

Só não deixe de baixar a tampa, por favor

Claro, todas as louças do banheiro devem continuar sendo muito bem higienizadas. A curiosidade, contudo, vem de estudiosos da Universidade de Oklahoma, nos Estados Unidos.  Eles afirmam que, se a pessoa estiver infectada e usar o banheiro, o momento de dar a descarga poderá ser fatídico, levantando uma nuvem de gotículas carregadas de coronavírus. 

Calma, é uma hipótese apenas. Os autores se baseiam em pesquisas anteriores com outros vírus que saem pelas fezes.

Eles acham que, no caso da covid-19, pode acontecer o mesmo fenômeno. Por isso recomendam: antes de apertar a descarga, feche a tampa do vaso sanitário. Até que se prove o contrário, por pura precaução, temos que cuidar de mais este hábito. A etiqueta da pandemia pede água e sabão a todo instante, álcool em gel, uso de máscaras, ficar em casa e, uma vez nela,  fechar a tampa ao ir ao banheiro para não deixar no ambiente um verdadeiro spray de coronavírus e…Você me entendeu.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.