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Blog da Lúcia Helena

Adeus à ilusão: a vacina vai demorar, não terá para todos, nem será barata

Lúcia Helena

14/05/2020 04h00

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Quando foi dada a largada, isto é, logo que o novo coronavírus mostrou a que veio, um monte de laboratório saiu correndo feito doido desembestado. Mais do que compreensível o passo acelerado: quem nos tornar imunes a essa praga chamada Sars-CoV-2 irá tornar a pandemia página virada da História, curar a economia mundial em frangalhos e nos devolver a possibilidade de dar abraços apertados. 

Hoje, se quer saber,  são 102 projetos de vacina nessa prova em fase pré-clínica — leia, dando os primeiros passos em testes em modelos no computador, em tubos de ensaio e, quando muito, em bichos. Sem contar outra centena de pedidos em aquecimento, aguardando ainda a autorização para entrar nessa pista. 

Oito projetos, por sua vez, agitam a torcida porque já avançaram bem mais e se encontram em fase clínica, isto é, com a formulação sendo experimentada em gente como a gente.  Mas o percurso é longo e, diria, essa é uma corrida de obstáculos. A reta final está bem mais distante do que o noticiário sobre mais uma "promissora" vacina escancara— e sabe-se lá quem cairá pelo caminho. Teremos sorte se caírem quase todos em vez de todos.

Não quero jogar um balde de água fria na esperança. Ela existe e, de fato, será a última a perder o fôlego. Mas me vêm à cabeça as palavras do escritor paraibano, pernambucano de coração, Ariano Suassuna (1927-2014), cuja sinceridade leve faz uma falta danada em uma horas dessas, quando as verdades são tão pesadas. E ele dizia: "O otimista é um tolo. O pessimista, um chato. Bom mesmo é ser um realista esperançoso".  Pois bem, não quero ser chata, mas também não quero fazê-lo de tolo. Vamos então à realidade.

Entenda: fase clínica não significa que estamos perto

Para pisar nesse chão duro, busquei ninguém menos do que o infectologista Alberto dos Santos de Lemos, que é o chefe do Laboratório de Pesquisa em Imunização e Vigilância em Saúde do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (Fiocruz). Ele também atua na linha de frente do hospital da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e está terminando "Covid-19: Guia Prático de Infectologia" (Ed. Manole), um livro para orientar os profissionais de saúde que tratam os  infectados.  "Atrasou um pouco porque pessoas que convidei para escrever capítulos pegaram a doença', me conta. É, a tal da realidade….

Sobre a vacina, ele prepara o terreno para plantar alguns conceitos e a gente entender o que acontece: "O desenvolvimento de um imunizante nunca é fácil porque as regras são ainda mais rígidas do que para outros remédios. Quanto seu objetivo é tratar um problema, dependendo do caso, você até tolera determinados efeitos colaterais. Mas com a vacina não:  ela não deveria provocar nada, principalmente a própria doença que pretende combater."

E dizer que uma vacina está sendo testada em seres humanos não significa que estamos próximos da reta final. Até porque a tal etapa clínica se desdobra em três fases, entende?  "A fase 1 é aquela em que a gente avalia a segurança, ou seja, justamente essa história de que ela não pode causar mal", define o doutor Alberto de Lemos.  Vamos nos situar: entre aquelas oito vacinas, a maioria está na fase 1, quase metade prestes a começar a fase 2. 

"Na fase 2, o que se testa é a imunogenicidade", ensina o infectologista. Em outras palavras:  se a vacina é capaz de fazer o que todo mundo espera dela, isto é, levar o organismo a produzir anticorpos contra o coronavírus. E, sim, um daqueles oito imunizantes aplicados em seres humanos está avançando velozmente, com toda a pinta de iniciar a fase 3 ainda neste ano.

Só que na fase três o bicho pega de vez, porque não basta produzir anticorpos. Eles são mesmo eficazes? Eles dão conta do recado? Para saber disso, os cientistas comparam quem recebeu a vacina testada com quem recebeu placebo. Sei, não parece bacana metade dos voluntários tomar uma vacina que tem chance real de funcionar e outra metade ficar na mão, com um imunizante de mentirinha. Mas, calma, ninguém é exposto ao coronavírus, o próprio, pagando pra ver. "O que fazemos é buscar moléculas no sangue que chamamos de correlatos de imunidade. Elas são pistas de que a pessoa, entrando em contato com o vírus, estará protegida."

Nessa terceira fase, são produzidas montanhas de relatórios entregues a comitês de ética. "Eles são mensais ou trimestrais. Se for relatado qualquer mínimo dano a quem recebeu a vacina, tudo pode ser interrompido", conta o médico. "Por outro lado, se os relatórios apontam que as pessoas vacinadas  não estão adoecendo, enquanto os voluntários que receberam placebo pegaram a doença no dia a dia, a ordem poderá ser vaciná-los pra valer também. Tudo pode mudar no meio do caminho durante a fase 3". E, assim, ela demora. Não se pode ter certeza de que alguém está protegido de uma doenças dessas dando uma picadinha e comemorando por que a pessoa não pegou covid-19 no mês seguinte. É preciso um bom tempo de observação. Por falar nisso…

Por que foi possível pular ou apressar etapas

Sim, há uma ansiedade enorme. E, se uma vacina qualquer pode levar mais de década para surgir, há desta vez todo um esforço para comprimir os prazos. O que não significa que vão sair aplicando, em bom português, qualquer porcaria na humanidade. Por mais que os pesquisadores corram, há um limite na fase clínica, em especial neste caso,  já que mal desvendamos todas as faces da própria covid-19 com seus estragos pelo corpo.

Aliás, só foi possível correr de maneira alucinante e até pular passos na fase pré-clínica porque algumas respostas já tinham sido encontradas no passado. Explico: o coronavírus da vez é novíssimo. Mas tem um avô que causou a epidemia de SARS na China em 2002 e um parente, extremamente letal, que espalhou outra síndrome respiratória aguda, a Mers, em 2012 no Oriente Médio. Nas duas ocasiões, os laboratórios começaram a bolar vacinas.  Mas então tudo pareceu sob controle e o serviço foi engavetado. Parte dele foi reaproveitada agora. Sorte.

As três possíveis estratégias de uma vacina

Existem três caminhos para fazer o corpo aprender a se defender do novo coronavírus. Um deles é inativá-lo, isto é, arrancar o pedaço que lhe capacita a nos fazer mal. "No caso, são as espículas, proteínas que dão o aspecto de coroa de espinhos a esse vírus", conta Alberto de Lemos. E veja o  desafio: não pode ser tirado do vírus algo que faça o corpo deixar de reconhecê-lo como tal para produzir anticorpos específicos contra ele e nenhum vírus mais.  Mas também não pode ficar uma proteína que, embora seja apenas dele e produza essa reação de defesa sob medida, vá causar a doença.  É uma corda bamba.

O segundo tipo de vacina lança mão de um outro vírus que não nos faz mal algum. Um dos oito imunizantes testados para a covid-19 usa um adenovírus que só causa doença em animais. Dentro dele, porém, vão proteínas do maldito Sars-CoV-2. Ao  infectar células do nosso sistema imunológico, feito um cavalo de Tróia,  esse vírus as obriga a produzir cópias da proteína do verdadeiro inimigo, que entraram no corpo de contrabando. Então, as defesas talvez se mobilizem e criem anticorpos. 

Por fim, existem vacinas que simplesmente injetam pedaços do material genético do vírus embrulhados em microscópicas vesículas. Qual tipo seria o melhor? Você sabe a resposta: o que funcionar. Mas fique claro que a maioria das oito vacinas em fase clínica só vai pisar na terceira etapa, a mais longa delas, no ano que vem.

A questão da durabilidade ficará para depois

Será que, se tudo der certo na etapa 3, tomaremos a vacina e seremos felizes sem covid-19 pelo resto da vida? Ah, aí é querer saber demais. "Essa é uma resposta que leva anos a fio e é uma etapa posterior", esclarece Alberto de Lemos. "Provavelmente a vacina, quando surgir, será liberada sem que a gente saiba se a pessoa estará imunizada para sempre ou se precisará de dose de reforço", diz ele.

Pena, mas faltará vacina

"Mesmo que todos os laboratórios se juntassem, não existiria parque industrial suficiente para produzir doses para toda a humanidade", calcula o infectologista. Então, de cara, a tal vacina não será para todo mundo. "Uma grande discussão é estabelecer critérios de prioridade", diz o médico. Existe apenas um acordo nesse debate em escala planetária: profissionais de saúde em primeiro lugar. Faz todo o sentido — se eles adoecem, o restante de nós se lasca. 

"Parece lógico que, nesse cenário, tão importante quanto ter a vacina será a gente contar com testes capazes de dar 100% de certeza de que uma pessoa já teve covid-19 e, mais do que isso, que ela está protegida", observa Alberto de Lemos. Atenção: hoje esse teste não existe. Mas, se um dia existir,  vamos evitar vacinar quem não precisa e otimizar as doses disponíveis.

Em quanto tempo?

Estabelecido quem é prioridade, estimar o tempo necessário para vacinar esses grupos de risco após uma aprovação só seria possível na base do chute . "Entre aqueles três tipos de vacina — vírus inativado, pedaço de material genético ou proteínas do Sars-CoV-2 dentro de outro vírus —, existem tecnologias mais rápidas e menos rápidas para a produção de doses." Ou seja, precisaríamos de bola de cristal para adivinhar agora que tipo ou quais tipos ultrapassarão a linha de chegada. Ninguém é bidu. Então, vamos parar de chutar prazos, combinado?

Deverá custar caro

O valor de uma vacina para a covid-19 não será estabelecido só pela altíssima demanda, pela tecnologia, pelos anos de pesquisa… Isso tudo até vai determinar o preço do medicamento em si. Mas o custo do processo de vacinação é outra história, mais ampla.

De novo, vai depender da vacina que for aprovada lá adiante. Alberto de Lemos exemplifica: "Para não perder o efeito, a maioria das vacinas exige uma temperatura precisa. Algumas não podem ser expostas à luz. E tudo isso vai complicando o transporte, o armazenamento… Logo, vai encarecendo".

Risco de efeitos colaterais

Esse é o medo tolo de certas pessoas quando pensam em vacinação. Puxam pela memória que a vacina da gripe H1N1, por exemplo, pode provocar em um número ínfimo de indivíduos a síndrome de Guillain-Barré, em que as células de defesa do corpo atacam nervos e provocam de fraqueza extrema à falta de reflexo. "Mas o que ninguém conta é que o próprio vírus H1N1 causa o mesmo problema e a probabilidade de isso acontecer se a pessoa for infectada por não ter se vacinado é  bem maior", informa Alberto de Lemos.

Com um imunizante contra a covid-19 podem aparecer efeitos colaterais também, claro. Por isso, é necessária uma vigilância constante de qualquer vacina depois de lançada. Questão até matemática. Vamos imaginar uma reação anafilática que,  em princípio, pode acontecer por qualquer coisa em um em cada 1 milhão de indivíduos. Pense no seguinte: os testes de vacinas, mesmo nessas etapas finais, costumam envolver umas 200, 300, 600 pessoas no máximo. E talvez ninguém nesse grupo pequeno apresente problemas menos prováveis.  Mas eles poderão nos surpreender na imunização em massa.

Qualquer um poderá tomar?

"A vacina ideal funcionaria em qualquer pessoa", diz Alberto de Lemos. Mas a tal da realidade nem sempre é ideal. Pode ser, como o médico mesmo admite — e como acontece em outras vacinas —, que a ciência chegue a um imunizante que não proteja todos igualmente.  "Estamos, porém, diante de uma situção sem precedentes. Uma vacina que resolva o problema em parte da população já será uma conquista."  Uma conquista depois de uma longa — longa… — caminhada. Sigamos realistas. E na firmeza dos esperançosos.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.