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Blog da Lúcia Helena

A ciência dá pistas sobre a falta que faz a natureza durante o confinamento

Lúcia Helena

26/05/2020 04h00

iStock

Queria que você visse! A flor chegou na minha casa e dela eu não me desgrudei mais. A orquídea de um rosa chocante, diria quase fluorescente, foi parar ao lado do computador, no meio de uma bagunça de papéis, caderninhos, canetas coloridas — humilhadas pelo tom daquelas pétalas —, mais a xícara de café. Eu sabia que existiam outros cantos na sala onde a flor brilharia sozinha, sem concorrer com o caos no home-office. Mas sentia: precisava dela por perto. Então reparei que nunca tanta gente publicou tanto #tbt de parque, de mar, de trilha, de flor também. Sem contar os inúmeros pores do sol, como se de uma hora para outra a humanidade descobrisse que o céu, ao longo de uma vida inteira sobre nossas cabeças, também ficava cor de rosa.

Pode até parecer viagem da minha cabeça, que voou nessas ideias para longe do confinamento, mas prometo aterrissar no chão firme da ciência. É que, nessa hora, eu me lembrei dos estudos da professora Eliseth Leão, enfermeira com pós-doutorado pela Universidade Marc Bloch, em Strasbourg, na França. No Instituto de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, em São Paulo, onde também é docente,  ela vem se dedicando a investigar o impacto positivo da natureza sobre o bem-estar e a saúde de pacientes que estão confinados em um hospital. 

A pesquisadora não se espanta com as fotos recorrentes nas timelines. E me diz a razão: "Vivemos um momento em que estamos expostos sem parar a informações muito duras e a literatura científica aponta que imagens da natureza tendem a nos apaziguar. As pessoas então as buscam, mesmo sem ter muita consciência dessa motivação". 

Eliseth conta que após exercícios de relaxamento, por exemplo, quando se pergunta ao indivíduo o que ele imaginou durante sua execução, ele frequentemente descreve algo ligado à natureza. "E isso acontece mesmo sem haver qualquer tipo de indução para ficar com determinada imagem na cabeça enquanto relaxa, ou seja, mesmo sem uma voz lhe dizendo coisas como ' agora pense que você está diante do oceano azul'…" explica. 

Em experiências com música, diz Eliseth, nota-se o mesmo: se você pergunta a alguém se ele imaginou algo ao ouvir um som que considera relaxante, ele vai dizer que sim e provavelmente falará de uma paisagem. "Para se tranquilizar, a mente tenta voltar para o ambiente natural por um motivo muito justo: nós também somos animais", resume a professora. Mais complicados, é verdade. Ainda assim, animais.

Se, enquanto relaxamos, essas cenas vêm à cabeça, a recíproca parece ser verdadeira: só de olhar para uma flor como a minha, a gente permite que a tensão baixe. E com ela, talvez, a dor e outras formas de mal-estar. Existem estudos demonstrando isso pra valer desde a década de 1980. Por isso é bem possível, reconhece a professora, que a falta de contato direto com a grama de um parque ou com a onda do mar esteja tornando as coisas mais difíceis para muitos de nós durante a pandemia atual.

A pandemia, aliás, obrigou Eliseth e seus colegas a darem um tempo na segunda fase do estudo E-Natureza. Até a chegada da covid-19, 162 pacientes fazendo quimioterapia para combater um câncer já tinham participado. Durante as sessões do tratamento, os pesquisadores lhe mostraram imagens como a de pássaros, borboletas…  "Já deu para perceber coisas interessantes, embora o trabalho continue em adantamento", adianta Eliseth Leão. "O estado de ânimo muda quase que imediatamente quando os pacientes veem uma foto assim. E eles relatam menos sintomas como dor e fadiga."

Um banco brasileiro de imagens da natureza

A fase anterior do E-Natureza — realizado pela equipe de Eliseth no Einstein ao lado de pesquisadores do Instituto Butantan, da Universidade Federal Tecnológica do Paraná e com a ajuda do fotógrafo João Marcos Rosa— teve o objetivo justamente de criar um banco de imagens para serem usadas em hospitais. Até então, o mundo todo contava com quatro bancos de imagens da natureza exclusivos para cientistas, mas nenhum poderia ser usado com essa finalidade. Explico.

Vamos pegar o exemplo do IAPS (International Affective Picture System). Ele oferece milhares de fotos para pesquisas, mas tem alguns problemas. Um deles: a fotografia não pode ser mostrada fora da experiência científica em si, nem quando os pesquisadores publicam o seu trabalho. No artigo, ela fica identificada por um número apenas. E aí, sem ninguém de fora poder ver, não serviria para o que Eliseth e seus colegas estavam tramando para o futuro: aumentar o bem-estar de pacientes internados.

"Outro ponto é que esses bancos concentram fotos mais negativas por assim dizer, como a de aranhas venenosas, cobras peçonhentas, áreas devastadas e animais mutilados", diz a professora Eliseth. "Isso porque focam mais nas pesquisas sobre fobias, o oposto do que buscávamos, que seria aliviar o medo de uma doença ou de um tratamento."

A grande pergunta era: que tipo de imagem mais potencializaria o bem-estar em uma hora dessas? Teria um pássaro o mesmíssimo efeito de uma flor? Para encontrar a resposta, foram mais de 28 mil avaliações de cliques da natureza produzidos pela equipe brasileira. O resultado, agora, é um banco com 450 fotos. 

Os cientistas chegaram nelas usando basicamente dois scores. Um deles seria do que chamam de valência, se mais positiva ou mais negativa, isto é, se a imagem causaria mais prazer ou, em outro extremo, mais desprazer. 

O segundo score seria se ela deixaria quem a observasse mais alerta ou mais relaxado. "Eu posso ver uma onça pintada que, por ser lindíssima, terá uma avaliação alta na valência. Mas a maioria das pessoas fica mais alerta, em vez de menos tensa, diante de um animal desses. Portanto, já não seria  uma imagem adequada para esse uso clínico.  No caso, as  fotografias ideais são aquelas que têm uma valência muito positiva e que, ao mesmo tempo, relaxam", explica Eliseth Leão.

Por que a natureza faz bem?

Durante muito tempo, associou-se a natureza ao bem-estar porque as pessoas costumavam, por exemplo, frequentar parques para fazer uma atividade física. Mas hoje já se sabe que não é só por conta disso. "Há uma experiência estética, de reconhecer o belo. E ela dispara uma série de reações positivas no organismo", informa a pesquisadora.

Curioso, mas não vale aqui a velha história: o que seria do azul se não fosse o amarelo? Se o que é bonito para uns pode não ser para outros conforme fatores que passam pela cultura e os tempos nos quais o sujeito vive, uma rosa é uma rosa e é rosa em qualquer canto e desde sempre. Você pode perguntar aqui ou na China, para um velho ou para um moço, para o pobre e para o rico e ninguém a esnobará dizendo "que feia!". 

"A experiência estética da natureza tende a ser igual para todo mundo. Inclusive, posso não ter visto uma cerejeira do Japão florescer de perto, mas sua imagem irá despertar em mim reações parecidas com aquelas em quem já viu isso acontecer." O bem que a natureza faz, portanto, é universal. E esse benefício aparece depressa. Segundo alguns autores, baseando-se em exames de imagens, bastam milisegundos para surtir efeito. Antes mesmo de a pessoa abrir a boca em um "ohhh…".Faz sentido. Somos seres visuais: até nossos pensamentos são convertidos o tempo inteiro em imagens. É uma linguagem que o cérebro entende muito ligeiro.

Ao vivo e em cores, claro, seria melhor

Não tenha dúvida, porém, que a experiência real ganha de qualquer fotografia. Por mais que o sentido da visão impere, em ruas, parques, praias e montanhas há outros estímulos, como os sonoros dos pios de passarinhos. E até os táteis, como o sol batendo na pele ou o vento contra o rosto. "Sem dúvida, tudo isso junto libera muito mais endorfinas no cérebro, mensageiras do bem-estar", observa Eliseth.

Ela cita ainda substâncias conhecidas por fitocidas que os vegetais soltam no ar e que respiramos na caminhada por praças arborizadas, por exemplo. Elas ajudariam a ativar o sistema imunológico. "No entanto, se uma pessoa está em um hospital, não tem jeito. As imagens são a estratégia para levar um pouco disso até ela", justifica. É aí que argumento: confinados, agora, estamos todos. O que fazer?

A natureza para ajudar a gente a suportar

Ter uma planta em casa em tese pode ser melhor do que ver a fotografia de um bosque. Vale também, indica Eliseth — que nas horas vagas é uma exímia fotógrafa de passarinhos e vida selvagem —, instalar comedouros e bebedouros em quintais e varandas para tentar atrair pássaros. E, finalmente, voltamos ao recurso das fotografias. "Assim como devemos ficar atentos àquilo que comemos, precisamos prestar mais atenção e selecionar aquilo que enxergamos", aconselha. Ou seja, tentar em alguns momentos fechar os olhos para imagens que não despertam boas sensações. E — por que não? — buscar em seu lugar retratos da natureza.

Mas nada disso vai adiantar se não contemplar pra valer, "como uma criança que cata conchinhas na praia reparando na graça e nos detalhes", define Eliseth. Estudo realizado na Inglaterra com os usuários de seus parques mostra que o motivo número 1 de as pessoas perambularem neles seria caminhar com os cachorros. A segunda razão? Fazer exercício. A terceira? Levar as crianças para brincar. Observar a beleza desses lugares mereceu quarta colocação. Mas essas pessoas, com maior percepção do belo, tinham na mesma proporção maior satisfação com a vida. O que me faz lembrar da orquídea.  Queria que você visse!

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.