Topo

Blog da Lúcia Helena

Imunidade de rebanho? Ter anticorpos não libera para sair por aí como antes

Lúcia Helena

04/06/2020 04h00

iStock

Se por acaso ela passou pela sua cabeça, largue a ideia de voltar todo mundo às ruas para pegar o coronavírus de uma vez. Não será desse jeito atabalhoado que colocaremos um ponto final no drama da covid-19. 

Paciência, temos uma bela caminhada pela frente até alcançarmos aquela situação em que uma boa parte da população será capaz de se defender do vírus e funcionar como barreira para ele não se aproximar dos que restarem indefesos — essa seria a tal da imunidade de rebanho. E quer saber? Nem dá para dizer se quem já teve contato com o Sars-CoV 2 serviria como um bom escudo protetor.

Ainda que as ruas fiquem mais liberadas, máscara, muita água e sabão, álcool em gel e distância das aglomerações, que fazem parte da receita clássica para evitar que a covid-19 se espalhe, deverão valer por um prazo a perder de vista. Todo esse kit "xô, coronavírus" continuará necessário até para quem já teve a infecção. 

"Apesar de ser praticamente impossível que essa pessoa volte a manifestar a doença por algum tempo, ninguém garante que ela não possa transmitir o vírus em outra ocasião", afirma o imunologista Marcelo Vivolo Aun, professor da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein, em São Paulo.

Dois jeitos de ficar imune

Existem duas maneiras de seu organismo criar uma memória imunológica, isto é, depois de ser apresentado a determinado agente nocivo, aprender a reconhecê-lo depressa para atacá-lo de cara em um novo encontro. Uma delas é aprender na marra. Em suma: é pegar a doença.

Tudo bem, não é todo mundo que, ao entrar em contato com o novo coronavírus, vai ficar de fato doente. Mas naqueles 12%, 15% que têm febre, começam a tossir, sentem dores terríveis pelo corpo e outros sintomas, o bicho pega. Ô, se pega…

"Esse caminho para a imunização é uma solução drástica, porque a pessoa pode morrer ou, se sobreviver, ficar com sequelas", diz o professor Aun. Ok, do ponto de vista imunológico, se o indivíduo passa por essa má experiência, o seu aprendizado é extremamente eficiente. A memória imunológica ficará tinindo.

Mas outro caminho é o da vacina, mais seguro. "Você não será apresentado ao vírus, mas a um pedaço dele ou a um trecho do seu material genético", exemplifica Marcelo Aun. A eficiência da resposta poderá até ser um pouco menor do que se o seu corpo conhecesse o verdadeiro inimigo de perto, mas a vacina resolverá o problema de ensiná-lo a se defender sozinho. E não cobrará o preço da doença por essa lição. Só um detalhe: ainda não temos a vacina. 

O que é imunidade de rebanho

O nomezinho é infeliz, bem que poderia ser imunidade populacional, sei lá. O conceito de imunidade de rebanho — e por "rebanho" entenda eu, você, o cidadão ao lado — vale quando se trata de uma doença passada de uma pessoa para outra, como aquelas que se transmitem pelo ar. Não funciona para infecções que dependem de vetores metidos na história, como a dengue, transmitida por um mosquito.

A ideia é se alcançar uma porcentagem de indivíduos imunizados — não importando se foram contaminados ou se tomaram vacina — que funcione como uma imensa bolha envolvendo quem ainda não teve contato com o causador da doença.

Marcelo Aun dá o exemplo de uma sala de aula com dez alunos: "Se um deles pegar o novo coronavírus, irá transmiti-lo para outras dois ou três colegas. Logo, serão quatro alunos doentes", diz.  Os novos infectados, por sua vez, também transmitirão para mais dois ou três. E, em um piscar de olhos, a sala inteira terá o vírus. É o que no mundo da medicina se chama de solo virgem. E, nele, um vírus faz a festa.

Agora pense se, em vez de entrar ali alguém com o coronavírus, chegue um indivíduo que já criou aquela memória imunológica. Ele poderá se sentar entre um colega com o vírus e outro sem, diminuindo a probabilidade de transmissão. Seria uma proteção parcial é verdade. Diferente de ter, em vez de quatro alunos doentes, quatro imunizados. Aí, a probabilidade cairia ainda mais.

"Do mesmo modo, se tenho a maioria da população imunizada nas ruas, a probabilidade de eu cruzar com outra pessoa que esteja transmitindo o novo coronavírus diminui", explica o professor. Existe quase uma barreira física também, como se alguém vulnerável ficasse cercado por um colchão de pessoas que fossem incapazes de lhe passar a doença.

A imunidade de rebanho é um modelo matemático sempre. Quando a gente fala em sarampo, que tem altíssima transmissibilidade, a doença só é contida quando de 92% a 95% da população está imune. No caso da rubéola, 86%. Só que é cedo para alguém afirmar, sem chute, a proporção de pessoas que precisariam estar imunizadas para provocar o fenômeno do rebanho no caso do novo coronavírus. 

Como cada infectado tende a transmiti-lo para mais dois ou três sujeitos, não se pode falar em menos de 60%, na mais suave das hipóteses. Na real, são os epidemiologistas que, no futuro, darão o número mágico, associando a proporção de pessoas imunizadas ao momento em que a doença estiver sumindo do mapa.

Primeiro problema: ainda estamos longe disso

De largada, o Brasil é um dos países que menos testa no planeta, Isto posto, só digo: falta um bocado para 60%. Nas regiões do país onde já temos um cheiro do que acontece, quando muito 20% das pessoas já tiveram contato com o inimigo. A maioria do território nacional não alcança nem isso, ficando ali em entre 5% e 10% da população com anticorpos. Conclusão: para coronavírus, o Brasil ainda está no estágio do solo virgem.

Não é diferente pelo mundo afora. Em Nova York, epicentro da covid-19 nos Estados Unidos, só 19,9% dos cidadãos parecem ter contraído o novo coronavírus. Em Londres, na Inglaterra, apenas 17,5% da população têm anticorpos; 11,3% em Madri, na Espanha. Lá na China, em Wuhan, onde começou a confusão, somente 10% dos habitantes. E na região de Estocolmo, na Suécia, 7,3%, o que é curioso, porque os suecos resistiram à ideia do confinamento e apostaram em acelerar a tal imunidade de rebanho. Não deu certo. 

Segundo problema: anticorpos não garantem muita coisa

"Para complicar, o melhorzinho dos testes para flagrar anticorpos ainda dá muito falso negativo. E, por outro lado, o resultado positivo está longe de ser um passaporte para sair de casa tranquilo. Simplesmente porque anticorpos não são tudo", conta o professor Aun.

Os anticorpos apenas revelam que o seu corpo já conheceu o Sars-CoV 2. "Em termos populacionais, claro que essa é uma informação vital. Assim, temos noção de quantas pessoas em determinado lugar já tiveram contato com o novo coronavírus e que talvez tenham desenvolvido a resposta imunológica. É uma pista, o que chamamos de marcador em Medicina", explica Marcelo Aun. "Já quando pensamos no indivíduo, o fato de seu organismo apresentar anticorpos não significa que ele está 100% seguro", opina.

Isso porque o anticorpo é apenas parte da resposta imunológica e longe de ser a mais importante. Diria que a mais famosa, porque é a única que conseguimos dosar no sangue. "Tanto que existem pessoas que nascem sem a capacidade de formar anticorpos e ainda assim isso é compatível com a vida", lembra Marcelo Aun. 

Anticorpos são liberados por células imunológicas conhecidas por linfócitos B. Mas são os linfócitos T a chave das nossas defesas, segundo o imunologista. E nenhum exame disponível em hospital é capaz de medir sua eficiência. Logo, medir a eficiência da nossa capacidade de contra-atacar o coronavírus.

"Os linfócitos T é que organizam todo o exército das nossas defesas. E nas viroses, como a covid-19, ainda matam as células infectadas", diz Marcelo Aun, que faz uma analogia com o futebol para a gente entender a situação: "Os anticorpos ajudam porque formam a barreira na hora da falta. Mas o adversário pode cobrá-la por cima e fazer um gol". 

Protegido, mas talvez ainda transmitindo

E tem mais: hoje, uma indagação nos meios acadêmicos é se a pessoa que se curou da covid não pegaria o vírus uma segunda vez. "Já que tem as defesas armadas, ela só irá tossir um pouco e não fará qualquer associação a partir desse sintoma brando, achando que já teve a sua vez com coronavírus", imagina Marcelo Aun. "Mas o vírus talvez colonize a mucosa do seu nariz. Daí, embora não fique doente, ela seria um agente transmissor." 

Máscaras continuarão indispensáveis também para essa gente até alcançarmos os 60%. Idem, água, sabão, álcool em gel… Ora, o cartão no supermercado, o botão no elevador, tudo pode ser uma superfície boa para o vírus. E mesmo quem já tem anticorpos, sem levar as mãos, poderá levá-lo nas pontas dos dedos até aquele copo em que servirá água para um familiar.

Portanto, sinto: a não ser que esteja com sintomas de covid-19 e queira descartar a suspeita, não adianta participar da corrida para fazer o teste. Atenção, sua vida não escapará do raio do novo normal se ele der positivo. "Faça apenas se for para participar de algum estudo", aconselha Marcelo Aun. Sem vacina, forçar os tais 60% nas ruas, além de inútil, é arriscar a vida do gado. Digo, do rebanho inteiro.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.