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Blog da Lúcia Helena

Pecado seria permitir o que uma gravidez pode causar em um corpo de 10 anos

Lúcia Helena

20/08/2020 04h00

iStock20

O caminho que leva uma menina de 10 anos à sala de parto pode ser o seu corredor da morte. Aqui faço o exercício cirúrgico de catar nos escombros da infância — já soterrada, se uma criança vai dar à luz outra criança depois de ser abusada —, só aquilo que pode acontecer com o organismo. Isto é, quando aqueles que são insensíveis à alma dilacerada, mas que ousam pregar a sua salvação, levam uma menina de 10 anos a enfrentar uma gravidez até o final.

Talvez se pergunte por que insisto no tema. Afinal, a menina de 10 anos já está em casa e acabou. E então vou lhe dizer: ela foi para a sua casa assim como outras tantas meninas de 10 anos, aí é que está. Eu me refiro àquelas que não morreram no parto e àquelas que fizeram um aborto em centros de referência, já que o Código Penal, desde 1940, classifica como estupro o sexo com menor de 14 anos, mesmo que a adolescente tenha aceitado a relação.

Sim, há um número absurdo de meninas de 10 anos que voltaram, com ou sem bebê nos braços, para o teto que, muitas vezes, abriga o seu abusador. Aliás, isso é difícil de precisar em um país onde apenas cerca de 10% dos casos de crianças e adolescentes abusados sexualmente são notificados.

O fato é que uma em cada cinco brasileiras se torna mãe antes de virar mulher feita. A América Latina só perde para a África em gravidez na adolescência. E o Brasil com certeza contribuiu para esse segundo lugar. Entre nós, a cada hora são 55 partos em adolescentes, quase 1 por minuto.  

Só em 2015, 5.828 garotas que nem completaram 13 anos tiveram um filho. E note que esse número não considera as que perderam a vida na maternidade ou nas tentativas de interromper a gestação sem assistência hospitalar, tampouco as mães dos bebês que morreram por complicações, nem os abortos feitos legalmente.

Parafraseando o que saiu em redes sociais, lamentável presenciar aqueles que dizem representar Deus, com a missão de defender a vida, abençoarem esse calvário. A gente precisa entender o que acontece e não se calar mais — só não adianta ir reclamar com o bispo.

A idade para engravidar

Cada país classifica a adolescência de um jeito. Para a Organização Mundial de Saúde, ela vai dos 10 aos 19 anos. Mas os quatro primeiros — entre os 10 e os 14— englobam o que se chama de primeira adolescência. "Especialmente nessa etapa, do ponto de vista biológico, o organismo está longe de sua maturidade para suportar as alterações de uma gravidez", avisa o médico Robinson Dias de Medeiros, presidente da  Comissão Nacional Especializada em Violência Sexual e Interrupção Gestacional Prevista em Lei da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia).

No passado, ensinavam às meninas que a primeira menstruação — ou menarca — indicava que elas já poderiam de se tornar mães. Na intimidade do organismo de uma garota, porém, isso não confere. "As ovulações não são regulares, nem frequentes, justamente porque o corpo não está pronto", explica o doutor Medeiros. 

Para começo de conversa, devemos lembrar de cara dos hormônios sexuais, que mal e mal estão entrando na jogada. E são eles que, ao longo dessa primeira parte adolescência,  vão completar o desenvolvimento de todo o aparelho reprodutor feminino — colo do útero, trompas e até mesmo genitais. 

"Com o estímulo sexual repetitivo— e vamos nos lembrar que essas meninas foram abusadas, frequentemente mais de uma vez —,  o organismo pode até entender que é hora de ovular e isso então aconteceria de maneira precoce. Daí uma menina de 10 anos pode dar o azar de engravidar em sua primeira ovulação, vai saber… Mas todo o resto do processo de desenvolvimento acontece depois e precisaria de um tempo maior", me conta Silvana Quintana, professora da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, onde chefia o departamento de Ginecologia e Obstetrícia e, mais do que isso, lidera o Seavidas (Serviço de Atenção à Violência Doméstica e Agressão Sexual), que atende 26 municípios paulistas como centro de referência para interromper a gravidez em casos de estupros.

O corpo só fica pronto para gestar um filho por volta dos 16 anos — e olhe lá. "Antes disso, fisiologicamente a gravidez é considerada precoce.", explica a médica. 

Gestação de alto risco

Quanto mais nova é a menina abaixo dos 16 anos — imagine aos 10! —, maior o risco dessa gravidez. "Ele é, no mínimo, cerca de cinco vezes mais elevado em comparação com jovens que engravidam depois dos 20", calcula o doutor Medeiros. 

Fique claro, no entanto, que não existe gestação sem risco. "Ele pode ser baixo ou alto, conforme a probabilidade de problemas comprometendo a saúde da mãe e de bebê", explica Silvana Quintana. Entre os exemplos de coisas erradas que costumam ocorrer em gestações de alto risco, onde se enquadram todas as que acontecem cedo demais, estão pré-eclâmpsia, diabetes gestacional, bebês de tamanho muito pequeno, prematuridade…

O osso da bacia pode não ser o maior problema

É na segunda metade da adolescência que os ossos dos quadris se alargam. Mais do que criar o contorno típico do corpo feminino, isso deixa um espaço confortável para um bebê passar. Tal abertura nunca acontece aos 10 anos de idade e isso já foi muito apontado como um dificultador nos casos de gravidez precoce. 

"Só que, na prática, não é bem assim. A maioria das meninas consegue ter parto normal porque o bebê não se desenvolve direito e costuma ser pequeno demais Na verdade, tão pequeno que pode passar por uma bacia estreita de criança", diz a professora Silvana.

O tamanho do filho, em geral bem abaixo dos parâmetros saudáveis, é prenúncio de complicações para ele — com maior risco de morrer na barriga, asfixiado no parto ou apresentar uma série de dificuldades vida afora. Mas ninguém deve fantasiar essa criança arrebentando os ossos da outra, que lhe deu à luz. 

Isso, porém, não significa ausência de outras questões que merecem cuidado. "Quando falamos no parto, não há só os ossos dos quadris. Existem os ligamentos, por exemplo, que podem não suportar a sobrecarga nessa idade. E não podemos nos esquecer do períneo ", lembra a médica.

O doutor Robinson Moreira completa que, por menor que seja o filho, o útero de uma menina de 10 anos pode se estirar demais no momento de ele nascer, "como se as fibras chegassem a uma exaustão", e esse seria um dos fatores capazes de complicar sua vida reprodutiva futura.

Competição por nutrientes?

Essa é uma especulação, ainda sem comprovação científica, para explicar por que filhos de mães adolescentes são tão pequeninos e apresentam deficiências importantes ao nascer — aliás, às vezes nascem bem antes até por isso, porque o ventre materno, em vez de porto seguro, não lhe oferece todo o suporte à vida. 

A ideia é de que o organismo da menina-mãe, também em pleno desenvolvimento,  entre em competição por comida com o do filho. Nessa queda-de-braço, os dois saem perdendo.

Para ter noção, em uma gestação em adulta, a necessidade de cálcio da mulher aumenta até 50% para atender ao filho. Na adolescência, por sua vez, esse mineral também é crucial. "Agora, imagine uma gestação que acontece antes de a menina entrar no estirão, quando a adolescente ganha algo entre 10 e 12 centímetros!". Nem ela, nem o filho terão cálcio nos ossos para crescer.

Mais importante ainda é a falta de ferro. Espera-se que toda e qualquer gestação provoque uma anemia. "Mas os estudos apontam que ela é muito pior na gravidez precoce, provocando subnutrição fetal, com toda sorte de sequelas, e alterações drásticas no fluxo sanguíneo da menina", observa Robinson de Medeiros. A prevalência de anemias graves é duas vezes maior em grávidas adolescentes em relação a gestantes com mais de 20 anos.

Falta de pré-natal

A questão nutricional aponta para dois agravantes. Primeiro, a maioria das gestações precoces ocorre em adolescentes de classes sociais mais vulneráveis, segundo o IBGE, que também informa: 7 em cada 10 meninas grávidas são negras e 6 em cada 10 não estudaram ou pararam de estudar por causa do filho na barriga.

A gestação fora do tempo é o risco social mais citado para evasão escolar de meninas de baixa renda. O que, parênteses, já denota certa hipocrisia na situação recente. Se uma menina de classe mais favorecida engravidasse depois de um estupro, não peregrinaria atrás do direito de interromper essa gestação.

"A realidade triste é que essas garotas, quando chegam grávidas no serviço de saúde, costumam já ter anemias e outros problemas decorrentes de carências nutricionais e, daí, tudo piora de vez, tornando o seu estado muito frágil", comenta Silvana Quintana.

Os profissionais de saúde poderiam contornar a situação orientando a reposição do ferro no sangue, por exemplo. Mas, em parte pela condição social, em parte por não terem maturidade para compreender a importância desse cuidado, 80% das meninas gestantes não fazem o pré-natal direito.  Isto é, quando fazem. "E deve contar para essa baixa aderência ao pré-natal, claro, não ter sido uma gravidez desejada", reforça Silvana. 

Diabetes gestacional e eclâmpsia

O pré-natal tardio ou inexistente deixa escapar situações que deveriam ser acompanhadas muito de perto. Uma delas é o surgimento do diabetes gestacional, bem mais frequente nas meninas abaixo de 14. A outra é a elevação brusca da pressão sanguínea, que pode disparar a partir da vigésima semana gestacional, no fenômeno da pré-eclâmpsia, duas vezes mais comum em adolescentes, por uma dificuldade maior do organismo jovem para se adaptar a esse estado tão diferente.

Se nada é feito, o problema só piora, muitas vezes levando a um parto bem antes da hora, extremamente prematuro, para tentar salvar a vida da mãe. 

Na hora do parto

Se a gravidez é levada adiante, a pré-eclâmpsia pode virar eclâmpsia pra valer. Ela é capaz de literalmente  fazer explodir vasos por todo o corpo no momento de parir, levar o cérebro a convulsionar e, por um excesso de proteínas que precisam sair de circulação, deixar os rins falidos. A eclâmpsia é, atenção, nove vezes mais frequente nas adolescentes do que nas mulheres acima de 20 anos.

Mesmo sem eclâmpsia, podem ocorrer hemorragias severas — mais comuns no primeiro filho, o que costuma ser o caso das adolescentes. Por essas e por outras, complicações ao dar à luz são a sétima causa evitável de morte entre as nossas meninas. 

Pedras na mão

"As repercussões orgânicas, porém, não chegam aos pés das emocionais. Não há sentido algum em deixar seguir uma gravidez aos 10 anos", sublinha Silvana Quintana, que só nesta semana atendeu duas garotinhas na mesma faixa etária, na mesma situação que ganhou manchetes.

E esse é o nosso normal de sempre: quatro meninas entre 10 e 13 anos são estupradas por hora em nosso país. Muitas engravidam. Mas os profissionais em toda a cadeia para lhes poupar a vida resguardam a sua identidade, como quem cobre a criança com um manto. Não pode ser justo, certo e bom levar levianamente o caso a público e promover, simbolicamente, um estupro coletivo na frente de um hospital.

Que pelo menos a nossa "menina de 10 anos" — essa, que representa tantas das nossas garotas — não seja esquecida. "Que esse caso abra uma discussão ampla por mais educação sexual nas escolas, em que as crianças aprendam que adultos não podem tocar em seu corpo", concorda Silvana Quitanda. "E que os profissionais de saúde e de ensino sejam treinados para reconhecer os sinais da violência sexual, porque ela nunca está sozinha. Geralmente há pistas, um descuido, um descaso, um jeito de inferiorizar a menina", nota a médica.

Por fim,  garantir o direito sagrado de uma escolha que nunca é fácil. Mas é um direito de uma menina mulher. E ainda que, na cabeça de uns, fosse pecado salvar a sua vida , não compreendo como pegam a pedra que aquele, o qual dizem ser o seu maior exemplo, mandou largar.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.