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Blog da Lúcia Helena

Volta da criançada às escolas: faz sentido elas continuarem fechadas?

Lúcia Helena

25/08/2020 04h00

iStock

Não entra na minha cabeça por que cargas d'água pode ter bar aberto, shopping aberto, restaurante aberto, academia aberta, cabelereiro aberto e… escola de portas cerradas. Queria só entender a lógica, porque me parece que o risco de alguém ganhar um coronavírus de brinde em uma ida a qualquer um desses locais é tão ou mais alto do que na sala de aula. Será que faz sentido, então, a escola permanecer fechada? Sim. Estou convencida disso, mais ainda depois de ouvir o infectologista Francisco Ivanildo Oliveira, chefe do Serviço de Controle de Infecção do Sabará Hospital Infantil, em São Paulo, que é referência em pediatria no país.

"Só daria para as aulas voltarem ou haver uma expansão em seu processo de abertura quando a transmissibilidade do Sars-CoV 2 começasse a cair", diz o infectologia. Isso, porém, mal e mal dá indícios de acontecer aqui e acolá. E cada cidade terá de avaliar a sua própria situação antes de decidir pela reabertura de creches e escolas. 

"Não existe um número mágico para a gente dizer que 'a partir daqui será seguro mandar meu filho para a aula'. Portanto, o critério seria observar se há uma tendência de queda nas transmissões por vários dias seguidos — e isso,  para dizer o mínimo. O ideal mesmo seria aguardar uma redução sustentada de novos casos ao longo de, pelo menos, algumas semanas", ensina o médico.

Ou seja, a gangorra atual — sobe o número de pacientes em um dia e cai no outro — não dá segurança a ninguém. E atenção, como lembra o doutor Francisco Oliveira, isso valeria não só para as escolas, mas para abrir qualquer lugar no final de uma quarentena. Então, do ponto de vista da saúde, a falta de lógica não seria a escola fechada, mas bares, restaurantes, academias, cabelereiros, shoppings e o escambau escancarados. 

Sim, sim, existe o aspecto econômico. E sim, sim, em algum momento a vida teria de tomar um rumo fora de casa. O que, durante uma pandemia, deve acontecer aos poucos e, ainda assim, sempre implicará em algum risco. No entanto, se não dá para voltar totalmente ao normal — e vamos reconhecer que não dará tão cedo —, diz muito sobre uma sociedade por onde ela quer recomeçar e o que ela prioriza.

A maior interrupção da História

Por toda parte do mundo o povo quer saber quando as escolas poderão funcionar numa boa. O Sars-CoV 2, estima-se, afastou cerca de 1,5 bilhão de crianças e adolescentes das salas de aula. O período da pandemia já é considerado pela Unesco — o braço da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura — como a mais longa interrupção no Ensino de toda a História moderna. 

Tanto a Unesco quanto a OMS afirmam que o afastamento da meninada dos bancos escolares trará um prejuízo inestimável, inclusive para a cognição. Aliás, uma das recomendações é se aplicarem testes para avaliar os déficits de aprendizagem no período de ensino a distância.

Segundo estudo da consultoria McKinsey, nos Estados Unidos cada estudante branco deverá ficar com uma defasagem equivalente a sete meses de conteúdo. No entanto, entre os jovens negros e de origem hispânica, as lições perdidas ou mal assimiladas deverão equivaler a até dez meses de aulas presenciais e tudo devido às desigualdades sociais — uns têm desde sinal de internet melhor até mais espaço para aprender sem outros moradores atrapalhando com outras atividades por perto.

E a volta às aulas presenciais não promete ser fácil. O novo coronavírus se dissemina com facilidade em ambientes cheios e pouco ventilados, como o de muitas salas de aula do Brasil. Sem contar que, se a criança é menos suscetível a ficar doente ao se contaminar com o Sars-Cov 19, isso não significa que ela não possa passar esse vírus para professores e outros funcionários.

A covid-19 na infância

É um erro sair dizendo que crianças e adolescentes são imunes ao novo coronavírus. Os números brasileiros logo desmentem esse papo: segundo o Ministério da Saúde,  até agosto 5.331 meninos e meninas entre 0 e 19 anos foram hospitalizados por causa da covid-19.  Infelizmente, 585 deles morreram.

No entanto, a maioria da garotada abaixo dos 10 anos nem sequer tosse ou dá um espirro. Não fica com coriza, nada. É completamente assintomática. O que lavaria à dedução de que também transmita menos a doença.

A capacidade de transmissão das crianças

Em tese — atenção, apenas em tese —, o próprio fato de uma criança infectada não sair tossindo, nem espirrando por aí e, consequentemente lançando milhares cópias do vírus em gotículas de saliva suspensas no ar, já diminuiria o risco de ela passar o causador da covid-19 adiante.

Algumas boas pesquisas vinham apontando que, abaixo dos 10 anos, a probabilidade de um menino ou de uma menina transmitir o novo coronavírus parecia baixa. Mas um estudo da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, abalou essa confiança. 

Segundo o trabalho americano, a carga viral de crianças infectadas é bem maior do que a de adultos  doentes. Entenda: quanto maior a quantidade de um vírus no organismo, a tal carga viral, maior a capacidade de ele se espalhar por onde essa criatura passar. 

Uma crítica é que essa carga foi examinada em crianças com sintomas. Talvez não seja tão alta nas assintomáticas, dizem uns. Aí chegam outros — no caso, pesquisadores do Lurie Children's Hospital, em Chicago — e demonstram que existe uma carga viral 100 vezes maior no narizinho de pequenos de até 5 anos em relação ao que foi encontrado em adultos. 

Ou seja, a única certeza é de que o perigo de uma criança desenvolver a doença é menor e ele chega a encolher ainda mais olhando para as  formas graves da covid-19. No entanto, se criança transmite muito ou não, essa ainda é uma belíssima dúvida.

Como está sendo lá fora

Se a gente olhar para a experiência de outros países, os problemas surgiram onde a volta às aulas foi precipitada ou feita como se tudo estivesse calmo como antes do primeiro paciente na China. Foi o caso de Israel, que entrou em uma rígida quarentena em março e, quando tudo parecia bem, em maio, reabriu as escolas no esquema velho normal. 

Só que, por lá, não foi uma boa pedida. Em apenas duas semanas de aulas, havia 2.026 alunos e professores infectados. Dos 1.307 casos de covid-19 registrados em Israel no mês de julho, cerca de metade foi contraída no ambiente escolar. 

A Europa, por sua vez, está seguindo a cartilha da cautela. Na Alemanha, por exemplo, as aulas presenciais retornaram agora em agosto, mas de maneira muito escalonada. Professores de grupos de risco foram afastados. O restante faz testes duas vezes por semana e não dispensa  equipamentos de proteção individual. Os alunos foram divididos em turmas menores e nunca podem se aproximar demais de um coleguinha.

Já na Dinamarca, para citar outro exemplo, as refeições são feitas nas classes para evitar aglomerações em cantinas. E a cada duas horas toca o sinal: é para a criançada lavar as mãos.  

Muito além do álcool em gel

"A gente quer mesmo voltar ao normal?", questiona Tania Araújo-Jorge, coordenadora da pós-graduação em Ensino em Biociências e Saúde da Fiocruz, no Rio de Janeiro. "Afinal, foi esse 'normal' que nos trouxe essa situação", diz ela.

Tania não se refere apenas ao novo coronavírus em si, cuja chegada muitos atribuem ao desequilíbrio ambiental. Ela quer falar das dificuldades dos alunos na própria escola. Pensando nelas, a pesquisadora e seus colegas da Fiocruz lançaram um documento com cinco prioridades para o retorno às aulas.

"A primeira é ter ações para reconectar jovens, famílias e professores", conta. "E, ainda, criar um esquema de acolhimento emocional para alunos e funcionários, pois  todos podem estar com a saúde mental abalada."  

As outras medidas têm a ver com o vínculo com o ambiente escolar, a organização de um novo cotidiano — em que o ensino deverá continuar híbrido — e a criação de uma comissão. "Sem receita de bolo, conhecendo a sua realidade, cada escola deverá criar o seu plano", afirma.

O que os pais precisam saber

"Escuto que é melhor dar esse ano por perdido e o filho só voltar a ter aulas em 2021, imaginando que as coisas estarão diferentes até lá", conta o doutor Francisco Oliveira. "Ou pais que preferem esperar a vacina chegar. Ou, ainda, que aguardam sentir que as escolas se tornaram lugares seguros. Pois sinto dizer: não vamos ter 100% de segurança nos próximos anos."

Portanto, vamos ter de nos acostumar com novos hábitos como — batendo na tecla outra vez — manter certo afastamento e reforçar a higienização das mãos. "Também será necessário diminuir o número de contatos na escola", diz o médico. "Tudo bem que a criança não ficará restrita aos moradores da sua casa. Mas ela não deveria cruzar com várias pessoas, como antes, todos os dias."

Por isso, os protocolos de segurança incluem medidas para evitar que recreios de turmas diferentes coincidam e aulas presenciais com vários professores diferentes."Restringir contatos ganha uma importância maior se a criança convive com parentes em grupos de risco, como avós idosos", explica o médico.

Crianças não devem ser vacinadas tão cedo

Quem espera uma vacina para deixar o filho voltar ao seu mundo deveria saber: quando ela surgir e se surgir depressa, não fará milagres, devolvendo a rotina que conhecíamos do dia para a noite.

"É possível que até mesmo uma vacina boa só consiga oferecer 50%, 60% de proteção", especula Francisco Oliveira. "E então os cuidados na escola e em outros ambientes não poderão ser relaxados de vez." 

O principal ponto, porém, é outro: o mais provável é que essa futura vacina seja direcionada para aqueles grupos de maior vulnerabilidade, como idosos, diabéticos, profissionais de saúde… Decididamente, não tem por que crianças estarem à frente nessa fila. "Para completar, nenhum imunizante está sendo avaliado em crianças. Só depois que os cientistas tiverem certeza de que está funcionando em adultos é que os testes serão expandidos para o público infantil."

Portanto, não dá para esperar a tão sonhada vacina para entregar o filho ao professor. Ainda que aulas presenciais se misturem às pela internet, quando a escola abrir suas portas no tempo certo — leia, com as transmissões despencando — e com os devidos cuidados, o lugar da criança será lá dentro.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.