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Blog da Lúcia Helena

O tratamento brasileiro que está chegando à beira da cura do diabetes

Lúcia Helena

19/12/2017 04h20

Crédito: iStock

Se pedissem o meu palpite sobre qual seria um dos maiores desafios no campo da saúde, eu diria sem pestanejar: curar o diabetes. Sim, para a Medicina, isso pode ser mais complicado do que derrotar certos tumores.

Por enquanto, ninguém conseguiu a façanha. Mas, há três semanas, um time brasileiro mostrou que, nos casos do tipo 1 da doença, ele chegaram perto, muito perto mesmo, da cura. Tudo saiu em um artigo fresquinho, no badalado periódico científico Frontiers.

Ali está o mais recente capítulo de uma história que começou em 2003 e que já mereceu destaque em revistas internacionais, a cada nova peripécia ao longo desse tempo todo. Trata-se de uma aventura fascinante da ciência, liderada pelo endocrinologista Carlos Eduardo Barra Couri, pesquisador da Universidade de São Paulo, em Ribeirão Preto.

Mas, sinto dizer, a primeira cena é assustadora. Até porque costuma se desenrolar dentro do organismo de uma criança ou de um adolescente — o que, por si, é um dó. É o dia em que o sistema imunológico resolve dar uma de louco. Ele, então, aponta a sua mira para as células beta do pâncreas, como se elas fossem um vírus inimigo.

Sim, o diabetes tipo 1 é uma doença autoimune. Mas, diferentemente de outras condições do gênero, não adianta usar remédios para controlar a fúria do corpo contra si próprio. Eles, no caso, não resolvem.

Só um detalhe: as tais células beta, dizimadas assim do nada, são as produtoras do hormônio insulina. E não sei se faz ideia da enroscada que é ficar sem ele. Simplesmente não adianta se esbaldar com uma bela refeição. A energia do alimento, na forma de glicose, não consegue entrar nas células porque elas perderam a chave — no caso, a insulina. E nada feito.

Sem repor o hormônio, é como se o portador do diabetes tipo 1 morresse de fome no meio da fartura, já que a glicose está toda ali, no sangue. E repor… Bem, sabe como é: repor esse hormônio significa tomar várias injeções diárias. Sem contar as picadas para dosar o açúcar na circulação.

É preciso reconhecer que o tratamento melhorou demais nos últimos tempos. Existem insulinas mais eficientes e até mesmo um novo medidor de glicose que, grudado na pele feito curativo, dispensa  algumas das agulhadas.

E, não, ninguém inventou a insulina que você engole, porque o estômago faz o desserviço de quebrá-la — dizem que, um dia, os laboratórios darão um jeito nisso.

Nesse cenário, os pesquisadores da USP de Ribeirão Preto resolveram arriscar pra valer. Cogitaram agir direto na causa da doença. Decidiram desligar completamente o sistema imunológico e, na sequência, religá-lo, como a gente faz com um computador travado.

Em outros cantos do mundo, os cientistas ousaram menos, tirando de cena uma célula imunológica ou outra para tentar a mesma coisa. Não deu certo. Aqui, digamos, fomos bem mais radicais.

Doutor Couri gosta de comparar o sistema imune a uma orquestra. Nela, se faltar o violinista, a música soará diferente, talvez pior, mas o espetáculo ainda poderá acontecer. Ele e seus colegas não queriam dar essa oportunidade para o diabetes. Foi por isso que decidiram acabar com todas as células imunológicas de uma vez.

A destruição acontece ao longo de cinco dias de quimioterapia na veia. E, claro, não se trata de algo sem riscos de infecções graves, já que não sobra uma célula de defesa sequer para contar a história.

No sexto dia, porém, os médicos injetam no paciente células-tronco capazes de criar um sistema de defesa novinho em folha.  Ele nasce sem memória —  sem, portanto, a lembrança do "Zé Gotinha",  nem a de outra vacina qualquer. A vantagem é que também costuma se esquecer de atacar as produtoras de insulina no pâncreas. Oba!

Dos 25 primeiros pacientes tratados desse jeito, 21 ficaram por um bom tempo — em média, sete anos — sem a menor necessidade de injetar insulina. O recordista é um indivíduo que, há doze, dispensa essas injeções.

Até mesmo aqueles que voltaram a tomar insulina agora precisam de doses bem menores e, muitas vezes, só de uma picadinha por dia.

Ainda assim, vale lembrar que a estratégia está longe de ser suave, pelo risco que todos correram no início. Será que não teria sido mais vantajoso para esses pacientes fazer o tratamento normal? A resposta veio com a etapa recente do estudo, a que acaba de ser divulgada.

Durante dez anos, os cientistas acompanharam os pacientes tratados com essa forma de transplante e diabéticos que seguiram o tratamento convencional no consultório do endocrinologista. Na comparação,  ao contrário dos integrantes do grupo que foi tratado como de costume, os transplantados não apresentaram nenhuma complicação da doença. Nada de problema nos rins, nos olhos, nos nervos do corpo. Zero. O que já uma vitória e tanto. Afinal, o que faz o diabetes ser ruim feito um diabo é a quantidade de encrencas que provoca pelo corpo.

O Brasil é o terceiro colocado no ranking mundial do diabetes tipo 1. E o quarto colocado no tipo 2, aquele que acomete 15% da nossa população adulta, ou 14 milhões de pessoas. E que é provocado por um estilo de vida fora dos eixos, com dieta destrambelhada, excesso de peso e de preguiça para fazer ginástica.

O fato de a pesquisa da USP de Ribeirão não alçancar 100% de cura só dá a medida da complexidade do problema. Mas insisto em brincar que o doutor Couri ainda levará um Nobel.  Quem sabe… Preciso dizer que o médico é de uma cidadezinha mineira chamada Santos Dumont. Seu conterrâneo mais fraco inventou um tal de avião.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.