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Blog da Lúcia Helena

Você é do tipo que precisa de um boato pra tomar a vacina da gripe?

Lúcia Helena

26/04/2018 09h01

Crédito: iStock

Mesmice. Todo ano, a novela recomeça. Voltamos à estaca zero. Precisamos convencer um por um sobre a importância de se vacinar contra a gripe —  e, olha, nem vou discutir a relação com aqueles que cismaram de ir contra as vacinas em geral, porque o caso da imunização contra o vírus influenza, causador da encrenca, parece não ficar só nisso.

Ora, tem gente que não tem nada contra vacinas — outras vacinas, bem entendido —, mas que precisa ser quase caçada a laço para aderir à campanha, comparecer a um posto e evitar não só muita quebradeira, febre, espirros e afins, como hospitalizações e mortes. Desculpa ser desagradável e pintar a caveira, mas é bem disso que se trata: risco de morte.

Gripe não é resfriado. Não é um nariz vermelho, um atchim qualquer. Mudam os vírus e muda o tamanho do pano, eu diria — no resfriado, basta um lenço, enquanto a gripe, no mínimo, nos derruba no lençol.

As desculpas para alguém desdenhar a vacinação contra a doença são as de sempre. Duas batem o ponto em nossas orelhas campanha após campanha. Vamos lá, tenha paciência, você terá de ouvir tudo de novo.

Uma delas é a de que vacina, ela própria, provoca gripe, garantem uns. São aqueles que chegam contando — quem nunca ouviu? — que, poucas horas ou dias depois de tomar a injeção, ficaram um caco, com o nariz escorrendo e tudo mais. Respire e pondere: a vacina contra a gripe é feita de vírus inativado. Sabe o que isso significa? Que ele é uma espécie de vírus-estátua, que simplesmente não consegue se multiplicar dentro de você, nem em canto algum. E, por favor, guarde para toda a eternidade que, sem se multiplicar, nenhum vírus será capaz de provocar uma doença. Impossível.

Então, o que acontece? Ontem, para explicar por que alguns têm a impressão de ficarem gripados depois da vacina, quem conversou longamente comigo por telefone foi a farmacêutica bioquímica Marilda Siqueira, chefe do Laboratório de Vírus Respiratório e do Sarampo do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), no Rio de Janeiro, que integra o Sistema Global de Vigilância e Resposta à Influenza da Organização Mundial da Saúde e atua como referência nacional junto ao Ministério da Saúde.

É da responsabilidade desse laboratório identificar e produzir relatórios dedurando os vírus influenza que circulam por aqui. E a própria doutora Marilda participa, vez ou outra, do time de cientistas de vários países que, em quatro dias de trabalho intenso, se debruça sobre mais de 500 páginas de análises para definir as variações de influenza que serão usadas em uma próxima temporada de vacinação.

Segundo a cientista, existem centenas de vírus capazes de provocar sintomas respiratórios. A maioria deles permanece em silêncio por uns dois dias, no famoso período de incubação. E, sim, pode acontecer de a pessoa se vacinar contra a gripe já tendo sido infectada por um desses outros tipinhos. Então, tremendo azar, pouco tempo depois da picada começam os sintomas — de outra doença, bem entendido.

"Todo ano, no Brasil, temos uma epidemia do vírus sincicial respiratório e ela está começando justamente agora, coincidindo com o início da campanha de vacinação contra o influenza, o que pode causar confusões do gênero", exemplificou Marilda Siqueira para o blog. Em tempo: o vírus sincicial é um dos principais causadores de doença respiratória em crianças menores de 2 anos e, nelas, costuma provocar quadros mais graves. Já em adultos, esse vírus pega leve.

Vamos ao argumento número dois para fugir da injeção: a vacina não protege, porque o sujeito enfrenta a agulha e, mesmo assim, fica doente depois. Bem, isso é em parte verdade. Leu certo. Você pode ficar gripado, mesmo tendo se imunizado. Mas, ainda assim, não há razão para escapatória.

Todos nós queremos tomar uma vacina que nos livre de ter determinada infecção no futuro. Desejo legítimo. No caso do influenza, porém, o conceito de vacinação é outro — e, talvez pela frustração que causa, ele parece duro de ser compreendido. "O principal objetivo dessa imunização é fazer com que a pessoa não tenha uma gripe grave", esclarece Marilda Siqueira.

Ou seja, se você que é vacinado se infectar com o influenza por aí, sim, poderá cair gripado. Mas dificilmente irá parar em um hospital, correndo o risco de morrer por causa do próprio vírus ou por outra infecção, já que a gripe severa abre brecha para todo tipo de mal oportunista.

Isso acontece até porque, ao entrar pelas vias respiratórias, o vírus influenza estropia os milhões de cílios das células que revestem toda a trajetória do ar até alcançar os pulmões. Esses cílios é que, por meio de movimentos, arrastariam para fora os invasores, apreendidos pelo muco. Como descreve a doutora Marilda, se a gente pudesse observar no microscópio do laboratório a traqueia de alguém infectado pelo influenza, veria células carecas, incapazes de proteger  o sujeito de intrusos de toda espécie. "Além disso, o influenza, por si, pode matar", diz ela, reforçando essa dose de informação.

O influenza, diga-se, vai além do sistema respiratório. Na circulação sanguínea, joga toxinas por todos os lados, o que dispara a reação da febre. Se faz escala na conjuntiva dos olhos, provoca lágrimas — ao pé da letra. Também adora se hospedar nas articulações, que então incham graças às tentativas de defesa do sistema imune, emperrando tudo dos pés à cabeça. O corpo, quebrado de dor, se move aos trancos e barrancos. Se eu lhe contar tudo o que o influenza pode fazer, será um show de horrores, que pode, sim, terminar com uma verdadeira falência do organismo, especialmente quando ele é infantil, idoso ou já padece de outros males importantes.

"É claro que a vacina existente não é a dos nossos sonhos", reconhece Marilda Siqueira. "O ideal seria a pessoa não ter nem sequer uma gripe leve após a imunização e só repetir a dose a cada dez anos. Mas o que temos, hoje, é uma vacina que oferece imunidade baixa e uma proteção de curta duração. E é com essa realidade que temos de lidar", declara. Mesmo assim, garanto: é uma excelente pedida. Tirar alguém da faixa de risco de morte nunca é pouca coisa.

O Brasil pode ter todas as complicações que a gente se cansa de ver — e, parêntese, pro Brasil não há vacina — , mas sejamos justos: os brasileiros podem receber um imunizante caro. Não é o que se vê nos outros países que, quando muito, como nos Estados Unidos, facilitam o acesso. Ou seja, lá, o americano pode tomar vacina de gripe em qualquer farmácia na esquina. Mas o cidadão paga uns bons dólares por ela.

Entre nós, de graça até injeção no olho? Que nada! Pra fugir do posto de saúde em tempos de campanha, o povo vive encontrando desculpa fresquinha. A esfarrapada da vez é a seguinte: existiria uma cepa diferente e perigosíssima do vírus da gripe no nosso pedaço.

O boato divide a população. Uns, em pânico, até furariam  a fila da vacinação se pudessem — bobagem, podem ir com calma. Outros, do contra, aí mesmo é que não oferecem o braço à agulhada, porque ouviram dizer que o imunizante que começa a ser aplicado por todo o Brasil não contém justamente essa cepa viral mais ameaçadora. Não contém mesmo. Quer saber o porquê?

Cepa é o nome que os cientistas dão para variações de um mesmo vírus. E como o influenza varia! Para você ter ideia, do ponto de vista genético, o vírus do sarampo praticamente tem a mesma cara desde 1963, enquanto o influenza vem a cada seis, doze meses com algo diferente. Por isso mesmo, na OMS, cientistas de vários cantos do globo se reúnem duas vezes por ano.

Em fevereiro, eles estudam todas as variações do influenza que circularam no inverno do Hemisfério Norte para fazerem suas apostas: quais delas serão as mais parecidas com os vírus que irão surgir acima da linha do Equador no inverno seguinte? É com essas cepas que será feita a nova vacina para o Hemisfério Norte. Outra reunião ocorre invariavelmente em setembro para estudar os vírus que pintaram no inverno no Hemisfério Sul e tentar, mais uma vez prever o futuro, criando a vacina que será indicada para nós, por exemplo.

Aí é que está a origem do recente zunzunzum. Como toda previsão pode falhar, na virada deste ano a gripe atormentou pra valer os dias gélidos da Europa. Foram registrados mais casos e mais mortes do que a média. A cepa Hong Kong, responsável por uma epidemia em 1968 e protagonista da vacina que foi dada dessa vez por lá, acabou driblada pelo vírus que surgiu na vida real dos europeus. Daí que apenas 40 por cento das pessoas vacinadas ficaram protegidas. Mas, sossegue, os ajustes já foram feitos.

Aqui, no Brasil, na combinação de vírus inativados, o tipinho Hong Kong foi substituído pelo Cingapura. Como diz a doutora Marilda, ninguém tem bola de cristal, mas a expectativa é de que ele dê conta do recado no nosso inverno que se aproxima. Qualquer coisa que você fale diferente disso pode ser de medo de injeção disfarçado de cientificês à pura boataria. Não aceite mais esse tipo de desculpa. Ou — afe! —  precisará ler tudo isso aqui de novo em 2019.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.