A maneira como seu filho come é mais importante do que aquilo que ele come

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Escrevo sem experiência própria, só de olho no cadeirão da mesa vizinha. Isso porque meus filhos, hoje crescidos, sempre foram uns ogrinhos omnívoros — comiam de boa e comiam de tudo. Tirei bilhete premiado, então. E duas vezes! No Brasil, a refeição da criançada é uma batalha para até 57% das famílias. A colher vira arma. O brócolis, inimigo. Os lábios do bebê se transformam trincheira intransponível. A paciência de todos explode. O filho berra, a mãe chora, o pai sai da mesa.
As dificuldades alimentares frequentemente formam um território de guerra no lar, agridoce lar.
A expressão usada pelos profissionais de saúde é essa mesmo: dificuldades alimentares. Elas englobam desde problemas um tanto complexos, como o comportamento desafiador de crianças autistas à mesa, até situações bem mais simples, como um nariz entupido. Ressalvo: se o dono do nariz entupido tiver por volta de 1 ano, para ele isso não será nada simples, coitado.
Nessa idade, a gente mal consegue respirar pela boca, orifício por onde o ar compete com mãozinhas, brinquedos, chupetas, mamadas e… comida! Então, seja solidário com a irritação do pequeno se, por causa de uma sinusite ou de outro mal crônico, ele vive com as narinas obstruídas. Comer, para ele, não será exatamente a atividade mais serena do dia. E, claro, sua disposição para frutas , arroz, feijão, bife — o que for — será outra quando a questão nasal for resolvida. Seu problema não está no prato, mas bem diante, oops, bem dentro do seu nariz.
Aprendi esta e outras ao assistir a mais uma palestra ministrada pelo pediatra e nutrólogo Mauro Fisberg, um dos maiores especialistas no assunto do país e, talvez, do mundo — tanto que já participou de investigações a respeito da alimentação de crianças conduzidas na América Latina, na Europa e na Ásia. Professor da Universidade de São Paulo e coordenador do Centro de Dificuldades Alimentares do Instituto PENSI do Hospital Infantil Sabará, na capital paulista, ele declarou: "Mais do que nos preocupar com os nutrientes que a criança ingere ou deixa de ingerir, devemos prestar atenção em como ela come." Aqui, vale lembrar do tal nariz entupido e de muito mais.
É coisa do passado pensar que tudo sobre alimentação infantil saudável cabe naquela receita de papinha com ingredientes "obrigatórios" (entre aspas mesmo!) que o pediatra sacava da gaveta ou mandava imprimir para entregar à mãe do paciente-mirim. O verbo "alimentar-se" não é tão fácil de conjugar, nem pode ser traduzido em uma lista de compras.
Até porque, por falar em hábitos saudáveis, o ideal seria que o pequeno fizesse mais refeições ao lado dos pais, irmãos… Mas, na vida como ela é, a família brasileira só se alimenta junto duas vezes por semana. Atenção: duas vezes não são dois dias, mas um par de refeições, entendeu? Permanece o hábito de servir o almoço ou o jantar da meninada à parte — em outra mesa, em outra hora, às vezes em outro cômodo. O mais comum mesmo é cada morador da casa comer em um horário diferente.
"Aliás, pouco adianta comer junto se o clima não for legal", sempre observa Fisberg. As pessoas insistem em jogar à mesa suas irritações do dia. O pai (ou a mãe) aproveita aqueles instantes para dar a bronca no filho por algo que ele fez e a criança fica entre o pito e as garfadas.
Ou seja, as dificuldades alimentares muitas vezes não nascem no prato, nem no aparelho digestivo (olha o exemplo do nariz entupido). Elas podem ter mais a ver com o entorno.
Entre a turminha com dificuldade alimentar está a meninada seletiva, aquela que, por exemplo, fecha a boca para alimentos de determinadas cores. Vade retro, tudo o que é laranja, e afasta-te, cenoura, levando para bem longe a abóbora e o damasco. Ou, às vezes, o seletivo que não engole nadica que tenha certos sabores ou texturas ou, ainda, consistências. É o bebê que cuspia a papinha e que, depois, recusa o purê de batata.
Existem ainda os sensoriais intensos, aqueles sujeitos que têm os sentidos tremendamente aguçados. Aí cismam em gostar de uma marca de produto e ai se, em certo dia, ela não é encontrada no supermercado! Nanani-ná-não, eles não aceitam trocas.
Convenhamos: manias na hora comer quase todo mundo tem. O desespero dos pais é que tende a ser exagerado. Só é preciso ir à luta pelo seletivo quando, em função dessas manias, ele exclui das possibilidades de cardápio um grupo inteiro de nutrientes.
Outra velha queixa é a do baixo apetite. Mas, lembre-se, qualquer um de nós, quando não nos sentimos bem, comemos menos. Por que a pobre criança não teria esse direito? Um erro é dar estimulantes— que, quando funcionam, não têm efeito superior a uns sete dias.
Pior roubada é forçar. Se o filho vomitar depois de alguns aviõezinhos aterrissando na marra em sua boca, saiba: provavelmente você dançou. Isso pode gerar trauma e ser o gatilho de mais dificuldades alimentares. O que, pelo mesmo motivo, pode ocorrer com a criança que um dia precisou ficar internada e usou sonda. Não raro, ela se torna uma criaturinha difícil de lidar nas refeições.
Mauro Fisberg também me chamou a atenção para a quantidade: quem foi que disse que o menino precisa mamar 300 mililitros de leite?! O tamanho da mamadeira que você comprou? "Ninguém sabe se o apetite de um bebê comporta os 300 ou 190 mililitros. Nem nós, os pediatras", avisa o médico.
Há uma porção farta de hábitos que dificultam. Um deles é levar aparelhinhos com telas para a mesa. Quem nunca entregou um desses para o filho durante a refeição? Ah, você não, entendo… Mas nunca ligou o seu também, certo? Nunca, nunca, nunca respondeu um WhatsApp entre as mordiscadas, nem bisbilhotou a timeline ao esperar a sobremesa? Jamais leu este blog diante de um prato? É o tal do exemplo. Que igualmente vale para pais que gostariam que os filhos comessem verdura, mas que nunca pedem, eles próprios, uma salada.
Variar as preparações também é importante. Alguns podem não comer couve crua, mas adorar couve refogada etecétera. Em geral, o sinal amarelo pisca pra valer quando o médico pergunta quantas preparações a criança costuma comer no dia a dia e a lista fica em torno de umas 20 receitas. Ovo mexido, cozido, estalado, frito — cada um equivaleria a uma preparação, para ter uma ideia.
Só não se desgaste no outro extremo, tentando variar demais o cardápio: a criançada pequena gosta de um repeteco porque, assim, ela se sente até mais segura. Tanto que fica vendo o mesmo desenho animado quatrocentas vezes e pede para você lhe contar a historinha de todas as noites antes de dormir. A única coisa que não deveria ter bis é a tensão em torno de um momento que deveria ser gostoso. É preciso mais calma, porções maiores de presença e bons bocados de alegria na hora de comer. Receita que agradaria paladares de todas as idades.
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