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Blog da Lúcia Helena

A verdade é: o câncer sobre o qual você lê talvez não exista na vida real

Lúcia Helena

15/05/2018 09h53

A imagem mostra a célula cancerosa sendo combatida por células de defesa.  Crédito: iStock

Fumar, beber em excesso, comer demais, fazer ginástica de menos, levar uma vida estressante, ficar exposto a determinadas substâncias ou à radiação, carregar certos genes no âmago das células — tudo isso, junto e misturado, pode levar um indivíduo a desenvolver um tumor e diminuir drasticamente suas chances de superá-lo. Mas há outro fator de risco que vem sendo subestimado descaradamente, e não é de hoje: a falta de dados sobre o câncer. Você precisa saber que, nesse sentido, vivemos horas decisivas no Brasil.

Se buscar no PubMed, a fabulosa biblioteca de pesquisas em saúde mantida pelo governo americano, verá que, só entre a virada deste ano e o dia de hoje  foram publicados no mundo todo mais de 71 mil trabalhos sobre o câncer. Então você deve pensar: com tanta informação, por que esse escarcéu?

Mas aí eu lhe repasso a batata quente que o oncologista gaúcho Gustavo Werutsky jogou para os especialistas no encontro da Union for International Cancer Control, que aconteceu na semana passada, em São Paulo: "Será que os pacientes que participam desses estudos clínicos são os mesmos pacientes que todos nós encontramos na vida real? Parece que não."

A reunião aconteceu dentro de um evento do A. C. Camargo Cancer Center e, nela, Werutsky,  que é o atual diretor do Latin American Cooperative Oncology Group (LACOG) deu bons exemplos. Um deles: entre os pacientes com tumor nos pulmões tratados no hospital da PUC do Rio Grande do Sul, 65% não seriam candidatos a participar de qualquer estudo.  Pois é, sinto informar, toda pesquisa seleciona a dedo quem vai testar, por exemplo, um remédio. Geralmente são pessoas que não têm outras complicações de saúde. Mas olhe para o seu lado, agora mesmo, e me diga: quem já não carrega algum problema no corpo, por menor que seja?

Os cientistas não fazem essa seleção por má fé, veja bem. Mas até para saber se uma nova droga não causaria efeitos adversos. Só que, claro, os resultados que estão no papel acabam diferentes — e mais cor-de-rosa — do que aqueles de quando você aplica o mesmíssimo tratamento no dia a dia dos hospitais.

Há outras questões. Mesmo notando que a genética tem o seu peso, só 10% dos participantes das pesquisas sobre câncer realizadas nos Estados Unidos são negros. Mas a gente sabe que 25% da população americana é negra, portanto… Bem, portanto,  tudo o que foi analisado sobre o câncer em solo americano pode ser  ligeiramente diferente na prática, para pior ou, quem sabe, para melhor (tomara!). Há uma distorção, entende? E dá até para chutar que,  no colorido de raças e costumes do nosso país, ela seja imensa.

Mais esta: um quarto dos americanos examinados nos trabalhos sobre tumores tem mais de 65 anos, enquanto 60% dos pacientes com câncer nesse país já passaram dessa idade. E por aí vai. Nos Estados Unidos — eis o grande porém –, pelo menos 80% dos episódios de câncer são notificados. Aqui não.  Aqui, não sabemos nem sequer como são e onde estão as pessoas que convivem com um câncer, para então medir a profundidade da vala entre elas e as publicações científicas.

É provável que existam de 800 mil a 900 mil brasileiros passando por um tratamento oncológico neste exato momento. No entanto, só 68 mil casos de câncer foram registrados em hospitais do Brasil em 2015, que é o dado mais recente disponível. Ou seja, existem mais de 730 mil pacientes sob uma espécie de manto de invisibilidade do Harry Potter.

Ai, que inveja roxa de quem pelo menos sabe se os seus doentes são muito diferentes daqueles que participaram dos estudos… Estamos ainda distantes dessa discussão tão moderna na ciência médica, a de colher dados do mundo real.

Enquanto a Medicina faz o que pode, como ela voa às cegas, o câncer se alastra pelo nosso território, sem que seja possível enxergar onde faltam equipamentos para diagnóstico precoce, por exemplo. Tateando a realidade, fica difícil desenhar estratégias para levar Oncologia de ponta para todo mundo.  Ora, mesmo que um gestor de saúde bem intencionado queira criar um centro oncológico em seu município, ele não conseguirá recursos sem provar que existe quantidade de pacientes o suficiente para o investimento.

Amanhã — sim, amanhã! — a Comissão de Assuntos Sociais do Senado (CAS) vai analisar se o projeto de lei 8470/17 criado pela deputada Carman Zanotto, de Santa Catarina, merece passar para a votação na plenária. Ele determina a notificação compulsória, como já existe para várias doenças infecciosas e até para picada de cobra, por exemplo. Não será opcional: se a lei for aprovada, o médico será obrigado registrar em um sistema do Ministério da Saúde cada caso de câncer que diagnosticar. E, daí sim, será possível saber quem tem um tumor neste país, onde ele está, o que lhe falta. Conhecer o tamanho da encrenca para enfrentá-la.

O projeto é apoiado por um grupo de trabalho sem fins lucrativos, o Go All, que reúne lado a lado, pela mesma causa, empresas do setor e diversas entidades de pacientes. Se eu fosse você, daria uma olhada na página deles no Facebook.

Para o médico Sandro Martins, coordenador geral de Atenção Especializada do Ministério da Saúde, "a aprovação de uma lei será o maior divisor de águas no tratamento do câncer deste país, porque a probabilidade é de que a incidência da doença seja 50% maior do que aquela que conseguimos demonstrar oficialmente."

Nunca escrevo sobre políticas de saúde e acabo de abrir exceção em mais de trinta anos de carreira. Porque elas esbarram na tal vida real — se não a atropelam. É quando a gente percebe que, por falta de registro, o câncer de colo de útero está entre as principais causas de mortalidade entre mulheres do Norte e do Nordeste do país, que ficam sem nem sequer profissionais para colher um simples Papanicolau. No entanto, se você olhar para a literatura, esse é um tumor com 80% de chances de cura. Quero dizer, até seria, se essas pacientes  não permanecessem transparentes.

Talvez eu devesse mudar o título deste post: no Brasil, o câncer sobre o qual você lê  permanece invisível na vida real. E, por isso, fantasmagórico, até que a gente se mexa para espantá-lo.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.