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Blog da Lúcia Helena

Já ouviu falar de esforço auditivo? Ele faz total diferença no aprendizado

Lúcia Helena

10/07/2018 04h00

Crédito: iStock

O assunto é pra lá de importante — e, atenção, não só para pais e professores de crianças e adolescentes com deficiência auditiva. Só que, por ironia, ninguém lhe dá muito ouvido.  O esforço auditivo é a dificuldade para compreender a fala em um ambiente ruidoso e,  anote, ele não apenas prejudica a memorização de informações como, ao exigir demais do sistema nervoso, provoca panes que se traduzem em fadiga física, exaustão mental, alterações de humor e — ufa! — estresse crônico.

Na sala de aula, afinal, a competição é dura. Enquanto o professor faz força no gogó para ensinar, tem carro passando na rua, gente rindo no corredor, uma cadeira sendo arrastada, um objeto caindo no chão, passarinho piando, um zunzunzum do recreio, o chiado de um ventilador… De quebra, as conversas paralelas entre a garotada.

No entanto, mais fácil o estudante ter consciência de uma dificuldade para enxergar a lousa do que perceber o esforço danado para ouvir, filtrando todos esses sons para entender a matéria que está sendo ensinada.

Difícil também era avaliar esse esforço, que pode ser dobrado no caso daqueles 5% de meninos e meninas que já nascem com deficiência auditiva. Mas agora pesquisadores da Universidade de São Paulo acabam de lançar uma plataforma digital aberta e gratuita chamada Paleta, que deverá facilitar a tarefa para os fonoaudiólogos. E, mal surgiu a novidade, ela já está fazendo barulho — no bom sentido. Deverá ganhar versões em inglês, francês e espanhol. É que, no mundo inteiro,  não existia uma ferramenta assim para medir o esforço auditivo nos adolescentes.

Tudo começou durante o doutorado da fonoaudióloga Aline Duarte da Cruz, na Faculdade de Odontologia de Bauru (FOB), atenta ao fato de que os volumes nas nossas escolas quase sempre ultrapassam  os limites para que o cérebro decifre e, na sequência, guarde direito o que escutamos.

Se o esforço auditivo acontece de vez em quando em outras situações, a gente até que se vira. Imagine aquela mesa comprida de restaurante em que é desesperador entender o sujeito sentado na outra ponta. Se perdemos uma palavra ou outra, preenchemos as lacunas por dedução. Mas na escola… Esse telefone sem fio pode ser comprometedor quando o assunto é uma teoria da Física — pior, valendo nota.

Para avaliar o impacto do ambiente turbulento nesse contexto, os fonoaudiólogos usavam estratégias que não facilitavam, nem eram muito precisas.  Uma delas era dosar o cortisol,  hormônio do estresse. Mas, se o jovem estava estressado, como provar que a causa era a dificuldade para escutar o professor? Havia também testes manuais,  trabalhosos e sem padronização.

Já a Paleta, criada também com a ajuda dos pesquisadores Seiji Isotani e Wilmax Cruz, do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação da USP, em São Carlos,  lembra um jogo que fez sucesso nos anos 1980, o Genius, em que botões coloridos emitiam sons e se iluminavam para, depois,  a moçada copiar a sequência memorizada (alguém aí se lembra do Genius?).

O teste pode ser feito no computador, no tablet ou no celular. Primeiro, o adolescente precisa repetir frases pronunciadas em meio a ruídos que competem pela sua atenção. Opa! Ruídos reais, captados em salas de aula e mixados pelos pesquisadores.  Eles são ajustados pelo fonoaudiólogo para a média dos decibéis encontrada no ambiente em que o jovem estuda.

Em uma segunda etapa, como no velho Genius, é preciso acertar a sequência de cores. Finalmente, o adolescente deve repetir as frases e acertar as cores simultaneamente.  No fundo, é igualzinho ter de ouvir o professor e anotar no caderno ao mesmo tempo.

Os participantes são orientados a priorizar repetir as frases,  deixando a memorização das cores como algo secundário, na base do "se der pra fazer".  No entanto, o que aponta o esforço auditivo é justamente o desempenho nessa segunda tarefa: se o jovem acertou 100% das sequências coloridas antes e, na fase final, ouvindo frases, só obteve 70% de acerto nas cores, isso é sinal de que o barulho não o deixa se concentrar.

A fonoaudióloga Regina Tangerino de Souza,  professora que orientou o trabalho de Aline na USP,  conta que a plataforma indica a diferença de decibéis necessária entre a voz do professor e os ruídos ao redor. Assim,  se um aluno acerta metade da sequência de cores e o resultado do teste é uma diferença de 15, isso indica que, se o professor fala em um volume de 70 decibéis,  o ruído ambiente precisa ser 15 decibéis mais baixo, ou seja, 55, para o adolescente ter esse mesmo desempenho.

A plataforma foi testada em 18 estudantes com audição normal e 13 com deficiência auditiva. Estes usavam o aparelho de amplificação associado a um sistema de frequência modulada (FM),  que desde 2013 é oferecido pelo SUS para quem tem entre 5 e 17 anos. Esse sistema capta a voz do professor por um microfone e a entrega, mais limpa, sem tantos ruídos, diretamente ao aparelhinho instalado na orelha, por wireless.  '

A Paleta  comparou os portadores com e sem o sistema FM acoplado para testar a eficácia desse recurso na diminuição do esforço auditivo — e,  de fato, com o FM, ele foi até menor do que nos jovens sem qualquer deficiência.

Para quem é da área da Fonoaudiologia, a plataforma pode ser acessada no endereço www.paleta.fob.usp.br .  Independentemente dela, é fundamental que pais, professores e os próprios jovens busquem melhores condições acústicas nas escolas.

O que atrapalha demais é a reverberação. "A onda sonora é como uma bola de pingue-pongue que, se cai num chão duro,  quica muitas vezes. Mas, se bate em um colchão, mal quica", compara Regina Tangerino. Na sala de aula,  o que faz as vezes de colchão, evitando que todo barulho ecoe, são quadros e cartazes nas paredes, plantas, cortinas de tecido ou de lona, que absorvem o som (não vale persiana!). Também ajuda colocar feltros sob os pés das cadeiras e dispor os alunos em círculos ou semi-círculos no lugar das tradicionais fileiras.

Alguns colégios vêm até adotando o sistema FM para todos — aí, a voz do professor vai para caixas de som. Só que, se a sala tiver paredes quase nuas e houver a tal reverberação, essa ideia irá piorar tudo de vez.

A principal medida, contudo, é  aumentar a conscientização para que todos ouçam que fazer menos barulho na aula é questão de saúde, afastando o cansaço, o mau humor e, claro, facilitando ao cérebro  gravar o que cairá na prova. Mas, psiu, quem já associou o esforço da audição àquela nota vermelha?

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.