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Blog da Lúcia Helena

Teste brasileiro revela, pela fala, se alguém é esquizofrênico ou bipolar

Lúcia Helena

13/12/2018 04h00

Crédito: iStock

Lá no fundo, a pessoa passa a se sentir estranha. Discretamente, aos poucos, vai evitando eventos sociais. Não importa o ambiente, pressente: algo de errado ou muito ruim pode acontecer a qualquer momento. Mas nada é assim tão gritante e ela muitas vezes acaba não procurando ajuda. Tenta tocar a vida, guardando toda a estranheza para si, até que surge a primeira alucinação, a marca assustadora e sofrida dos quadros psicóticos.

Bom seria se esse episódio — possivelmente, o primeiro de vários — nem ocorresse. Isso seria possível com um acompanhamento bem de perto do caso e uma série de intervenções, como evitar a todo custo situações de extremo estresse e ficar a léguas de substâncias, como drogas, que podem servir de gatilho. Fazer de tudo para prevenir a primeira alucinação pouparia muito dano, inclusive na capacidade cognitiva, que decai a cada crise no caso dos esquizofrênicos.

Daí o estardalhaço que está causando no mundo inteiro a proposta de diagnóstico desenvolvida pela psiquiatra Natália Bezerra Mota com seus colegas do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde a médica cearense se formou e atua desde 2006. É de cair o queixo.

Natália e seu grupo só precisam gravar a fala de um sujeito por 30 segundos, não mais, e então, pronto: um programa de computador faz a análise e devolve um desenho o certeiro, cheio de nós e arestas. Com fantásticos 93% de precisão,  ele acusa os passos iniciais, silenciosos e traiçoeiros, da esquizofrenia e prevê com dois anos de antecedência o primeiro surto de alucinação. Sem contar que avisa, seis meses antes, quando a cognição do esquizofrênico irá escorregar ladeira abaixo.

Não à toa, a tecnologia criada na UFRN acaba de ganhar o Prêmio Abril & Dasa de Inovação Médica. E saiba: o teste apresenta a  mesma acurácia para diagnosticar a bipolaridade, transtorno de humor que igualmente pode levar a alucinações. Também já existem cientistas cogitando estudá-lo para flagrar com antecipação diversos tipos de demência e até mesmo para acompanhar o desenvolvimento infantil.

O resultado é tão expressivo que já está sendo aplicado, para fins de estudo, em instituições da Inglaterra, dos Estados Unidos e do Canadá  — e, aí, não só  em inglês, mas em espanhol e em outros idiomas, só por segurança.  Natália Mota, porém, é firme: o idioma não interfere em nada. O que interessa é um padrão diferente de desenho final, que sempre aparece nos esquizofrênicos e nos  indivíduos com transtorno bipolar, sem importar se fizeram um relato em bom português, como os pacientes testados aqui,  em chinês ou em qualquer outra língua.

Isso porque, não é de hoje, os psiquiatras observam que pessoas com esses transtornos mentais falam de um jeito peculiar. "A fala diferente seria como aquele estado febril, indicando algo de errado. Na febre, o médico precisa fazer exames para saber se a pessoa tem uma infecção por vírus, por bactéria ou outro problema. Não seria diferente ", compara. Mas, nos transtornos mentais, tudo o que os psiquiatras até então conseguiam era abrir bem os ouvidos para que pudessem reparar nas pistas soltas no ar pela voz.

O problema é que nesse tipo de diagnóstico, baseado na pura observação clínica, a palavra do especialista, dizendo se a pessoa é portadora de um determinado transtorno psicótico ou não, sempre é um tanto subjetiva, por mais que existam bons profissionais de saúde, critérios claros, questionários e manuais. A precisão aumenta com o tempo de observação do paciente, claro. No entanto, essa espera pela confirmação da suspeita pode ser longa demais.  E  não raro, antes disso, o sujeito alucina.

Creio que nem preciso explicar a tremenda diferença que pode fazer um teste de 30 segundos, que exibe o seu  laudo em minutos, sendo simples, barato e, principalmente, capaz de oferecer  um diagnóstico com tamanha antecedência.

Nos 30 segundos de fala,  o programa capta  quatro características comuns nas tais duas grandes famílias de quadros psicóticos — a da esquizofrenia e a do transtorno bipolar de humor. A primeira delas: os portadores são repetitivos. Mesmo em um discurso breve, como o do teste, repetem palavras ou até mesmo frases inteiras. E isso quando não tornam a contar uma história qualquer.

Uma segunda característica: eles tendem a não falar as coisas com começo, meio e fim.  Tudo o que contam parece meio picotado. Sabe aquela sensação de que é difícil acompanhar onde alguém quer chegar?

Ah, também — terceiro aspecto —  falam tudo em ritmo mais acelerado do que o da média da população, encerrando o assunto de forma brusca. E ponto final no papo, mesmo que aquilo que estavam relatando não tenha chegado exatamente ao tal do final ou a uma conclusão coerente.

A quarta e última característica que o programa criado na UFRN transforma em desenhos: o empobrecimento do discurso. Como se a pessoa não tivesse um repertório muito vasto de vocábulos. Nesse instante, aliás, perguntei à Natália Mota como ficariam aqueles cidadãos que vivem em condições menos favorecidas, já que naturalmente lhes falta acesso à educação de qualidade — ora, me parece que eles já teriam um linguajar empobrecido pelas dificuldades sociais, certo?  A psiquiatra, então, explicou ao blog que  o nosso discurso de fato sempre varia conforme a idade, o nível de educação e o estado psiquiátrico. O algorítimo do programa, porém, considera tudo isso e compara o empobrecimento das palavras com padrões de pessoas com o mesmo grau de instrução.

Esse, aliás, foi um dos focos de um desdobramento de sua pesquisa premiada, que foi publicado na sexta-feira passada na Nature Schizofrenia — notícia, então, quentinha que dou para você. O artigo confirma que até mesmo doutores bem  letrados apresentam, entre os primeiros sinais sutis de manifestação de sua doença mental,  um discurso confuso e pobre, pobre…

Se quiser dar uma olhada, o link está aqui:

https://www.nature.com/articles/s41537-018-0067-3

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.