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Blog da Lúcia Helena

Não existe infecção generalizada. Mas o que existe começa de um jeito besta

Lúcia Helena

20/12/2018 04h00

Crédito: iStock

O nome certo do meu assunto hoje é sepse. Melhor esquecer de onde veio, porque soa mal eu contar que, do grego sêpsis, quer dizer putrefação. Mas se há algo que pode cheirar mal nessa história é aquela febre que, passados uns três dias, não cede nem por decreto. Ela pode ter começado por algo bem corriqueiro — uma dor de garganta, por que não? Só que, em vez de melhorar de pouquinho em pouquinho, mesmo que não fique boa de vez, a pessoa se mostra cada vez mais cansada, prostrada mesmo. 

A sonolência aumenta, até porque a pressão fica baixa. Às vezes tão baixa que o coração, aflito, eleva seus batimentos para compensá-la. Além da temperatura alta e da taquicardia, pode esperar que logo surge uma certa confusão mental. O que há de podre é que isso tudo pode matar. E muita gente morre de pura bobeira. Quer uma noção do que seria "muita gente"? Que tal 55,7% dos mais de 600 mil casos de sepse que acontecem todo ano no Brasil?

Condição descrita pelo velho Hipócrates uns quatro séculos antes de Cristo, quando a Medicina ainda engatinhava, apenas em 2002 — na longa trajetória da história, isso foi praticamente anteontem — é que se criou um grupo  para estudá-la e que se deu, pra valer, o nome ao boi: pois é, sepse. Que outros chamam — e até mesmo os médicos perdoam, quando cai assim na boca do povo — de infecção generalizada. Mas eis um nome que não descreve o caso.

Ora, não existe uma infecção se espalhando da cabeça aos pés, como o adjetivo "generalizada" dá a entender. "O problema é uma resposta exagerada do organismo a uma infecção qualquer", explica a nefrologista catarinense Geovana Basso, que hoje clinica em São Paulo. Ou seja, seria muito mais correto você pensar em uma inflamação generalizada.

Não é, portanto,  uma bactéria tomando posse de todos os seus órgãos e  dominando cada pedaço do seu ser. É o seu próprio corpo, intempestivo, lançando balas de canhão contra tudo o quanto é lugar por causa de uma infecção que pode estar lá, confinada no mesmo cantinho onde se originou.

Mesmo que o agente infeccioso tenha caído na corrente sanguínea, soltando por lá um monte de toxinas — na tal da septecemia, como se falava antes — não dá tempo para ele se espalhar de vez e arrasar com a sua vida. A inflamação é mais rápida e faz isso antes, comprometendo diversos órgãos vitais.

"Na verdade, tão rápida que faz muita diferença levar a pessoa imediatamente para um pronto-atendimento, assim que a gente nota  que aquele conjunto de sintomas não começa a ceder", diz Giovana Basso. E, uma vez dentro do hospital, espera-se que os médicos reconheçam os sinais da sepse e acreditem nos relatos dos acompanhantes para agir: as chances de sobrevivência aumentam bastante quando eles entram com antibiótico logo na primeira hora de internação.  Por outro lado, caem a cada minuto que o doente passa sem medicação — desculpa a franqueza, mas a curva é clara.

Ah, bom eu avisar: não adianta sair tomando aquele anti-inflamatório de farmácia em uma situações dessas. O que é preciso é debelar o foco que está disparando a forte reação do corpo.

E, olha,  nem é preciso um antibiótico de última geração, nada disso. Fármacos simples, como a velha penicilina, só que na veia, já resolvem nesse primeiro momento. "O tratamento capaz de salvar vidas, no início, é igual aqui, na Suécia ou em países africanos desfavorecidos", esclarece Geovana Basso.  A chave é de fato  o reconhecimento precoce — da família e da equipe de atendimento. Se ele não acontecer, todos amargarão a estatística de uma morte para cada dois casos.  Mais ou menos…

No entanto, vamos imaginar que essa primeira etapa tenha um final feliz para todos — lindo! Ainda assim, o tratamento continua e o paciente precisa seguir para uma unidade de tratamento intensivo. Aliás, um quarto dos leitos ocupados nas  UTIs brasileiras tem a ver com a sepse.  Por isso confusões como achar que sepse e infecção hospitalar são sinônimos. Nunca foram. A sepse costuma ser flagrada no hospital, mas em geral não nasceu por lá. Pode ser a evolução triste de uma infecção renal chata, de uma pneumonia mal curada, de qualquer perrengue desses, antes de o cidadão ser internado.

Daí também porque aqui, no Brasil, morrem — e isso é triste de doer — quase 60% dos pacientes internados, quando no mundo inteiro essa taxa fica entre 30% e 40% (e aí, no resto do planeta, muitas vezes por falta do tal atendimento precoce). É que, no nosso país, não se acha uma UTI em cada município, certo? Perdemos até para a lotadíssima Índia na falta do tratamento intensivo.

Quem tem a oportunidade de ficar na UTI de um hospital razoável, seja público, seja privado, pode respirar mais  tranquilo. Ali, os médicos dão todo o suporte aos  órgãos vitais que foram abalados pela inflamação exagerada, procurando evitar a temida múltipla falência. Os rins são os que mais sofrem e, por um tempinho, o paciente pode até precisar de diálise. Mas o quadro da injúria renal aguda, ou IRA, uma vez bem atendido, também passa.

Agora vamos sair do hospital e voltar para o sossego de casa. O que você pode fazer ali? Primeiro, o que já disse: não se conformar se os sinais de infecção não dão alívio e procurar ajuda médica. Em uma infecção leve, depois de um ou dois dias, a pessoa já deve ter melhorado nem que seja um pouco. Se isso não acontece, melhor prevenir e, se for o caso, remediar. 

O risco é de todos. Mas, claro, é maior em crianças, principalmente nas menores de 1 ano, em idosos e em todas aquelas pessoas que estão com imunidade baixa, por causa de alguma doença ou até do seu tratamento.

Em segundo lugar, sabe o que afasta a ameaça de sepse? Aquilo que a sua avó provavelmente já prescrevia: cama. Ou, pelo menos, diminuir ao máximo o ritmo de trabalho. "O organismo precisa de resguardo para se defender do jeito certo", diz  Geovana Basso ao blog. Em suma, repouso e refeições leves.

E desculpa, mas febre e infecção não ornam com academia nem com treino de corrida no parque, está bem? Os médicos são claros: quando você se resigna e fica parado, de preferência deitado e descansando, diminui o risco de a inflamação que surge em decorrência de uma infecção boba sair completamente do controle. Então, tente ficar sossegado no seu canto.

Ah, sim,  além da cama, até vale a receita da canja — ponto  para as vovós de novo. O que piora bastante o atendimento dos casos de sepse é que eles costumam chegar acompanhados da desidratação, depois de várias horas ou dias de o termômetro ficar nas alturas. Então a sopa cai bem, menos pela galinha e mais pela água mesmo. 

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.