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Blog da Lúcia Helena

Não adianta forçar: Deus não cabe no tubo de ensaio da medicina

Lúcia Helena

25/12/2018 04h00

Crédito: iStock

Quando alguém usa seu Santo Nome para alimentar os próprios bolsos de moedas e nutrir a credulidade, tão humana e tão terrena, de promessas de cura, pronto: Deus, citado em vão, é sem querer arrastado junto, como se fosse cúmplice da má fé dos curandeiros. É preciso se fazer justiça divina no caso. E dar a Cesar e aos pilantras o que é de César e dos pilantras.

Deus não cabe em pipetas. Não aparece na tomografia. Nem por isso podemos dizer que nada faz. No outro extremo, vamos deixar claro desde já: Deus também não usa faca sem assepsia e, parece lógico, não precisa de intermediários. E muito menos, creio eu, se mistura com quem faz o mal covardemente — eu arrisco que isso é coisa de outro departamento, muitos andares abaixo do seu imaginado terraço de nuvens.

Mas, entre o céu e a terra, há comportamentos que a ciência tenta, ousada como sempre, desvendar. E um dos mais estudados é o da oração.

No ano passado, Bruce Marino e sua equipe da Universidade Vanderbilt, nos Estados Unidos, concluíram um trabalho de fôlego nessa seara: eles acompanharam 5.449 adultos entre 40 e 65 anos. Todos fizeram exames de nove ou dez marcadores biológicos, ou seja, daquelas substâncias capazes de entregar a vocação para adoecer, como um  colesterol alto que aponta o dedo em riste para a ameaça de infarto.

Entre toda essa gente, 3.782 indivíduos frequentavam algum culto religioso rotineiramente. Os marcadores biológicos desses participantes, em geral, eram melhores do que os dos outros, que não praticavam nenhum ritual coletivo voltado à oração. Mas o mais curioso: comparando aqueles participantes dos dois grupos com marcadores, digamos, igualmente normais, a turma da fé ainda assim viveu mais e melhor,  como se o hábito de parar para orar fosse um fator de proteção por si só.

Céticos dirão –e é válido– que ninguém pode garantir que seria a oração a fonte da saúde e da longevidade nesses casos. Talvez por trás da disposição e do bem-estar esteja, pesando positivamente na história, o fato de essas pessoas terem algum suporte social, convivendo com outros indivíduos com a mesma fé durante esses cultos e sentindo-se amparadas por essa comunidade. Pode ser… 

Mas note que esse não é um estudo isolado. Só para citar outro, publicado no JAMA em 2016, mulheres que frequentavam a igreja pelo menos uma vez por semana, acompanhadas por longos 16 anos, apresentaram 33% menos risco de morrer.

Não deixa de ser irônico que rezar adie o encontro com o interlocutor nesse diálogo com o divino. Mas vamos lá…

Bem mais espantosos são os trabalhos sobre benefícios observados em pessoas que, elas próprias, não se puseram de joelhos nem estenderam suas mãos em prece e, sim, foram o objeto das orações de terceiros. E os efeitos dessa intercessão, ainda que discretos, também já foram observados, mesmo quando os doentes, a quilômetros de distância, nem faziam ideia de que alguém orava por eles. Vai saber…

Difícil explicar. Mais fácil e plausível para a ciência médica atual transformar o apelo a Deus em hormônios e em ondas cerebrais, como já fizeram cientistas da Universidade Duke, observando que as alterações orgânicas que surgem durante uma oração são similares àquelas da meditação, portanto, extremamente úteis para diminuir o estresse e ansiedade. E chegaram a durar horas depois de um curtíssimo Pai-Nosso. 

Nenhum dos trabalhos nessa linha, porém –e olha que são muitos!–,  manda substituir o médico por Deus. Aliás, estudo do Instituto Nacional do Câncer, americano, aponta que, quando a pessoa troca a quimioterapia e outros tratamentos convencionais pela fé e por estratégias terapêuticas  alternativas, o risco de morrer nos seis meses seguintes aumenta 2,5 vezes. Com Deus e com saúde não se brinca. Ou é brincadeira sem graça. Um pecado, não seria?

O que não significa que ter fé e conversar com Deus pedindo saúde deixe de agregar um benefício. Muito menos que Deus não exista ou que o aniversariante do dia não dê bola para as nossas mazelas. O que a ciência não prova, ela tampouco pode negar. Fato. 

Uma coisa é certa: todo o benefício da fé, atestado nos trabalhos confiáveis sobre oração, vêm da relação direta do indivíduo com algo maior, a quem cada um pode atribuir um nome — Deus, Pai, o Divino ou o Universo. E, nessa conversa íntima, não há intermediários. É você e Ele, Ele e você. Dupla suprema. Se alguém prometer o que só você e Deus podem fazer juntos para ajudar a Medicina dos homens– só vocês e ninguém mais — , desconfie que é mais um joãozinho charlatão. E vade retro.

 

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.