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Blog da Lúcia Helena

Lição da neurociência para o Ano Novo: ser feliz é questão de sobrevivência

Lúcia Helena

01/01/2019 04h00

Crédito: iStock

A gente ainda não sabe tudo — aliás, sabe bem pouco — sobre o funcionamento do cérebro. Mas, no balanço de um 2018 que desafiou a capacidade de a gente ser feliz, eis que vale resgatar o que já se desvendou sobre um de seus mistérios: em um papo-cabeça, o que seria felicidade?

Por que a gente se sente tão bem depois de uma risada franca e solta? E onde mora aquela sensação morninha de chegar em casa e encontrar uma pessoa querida, um gato ou um cachorro nos esperando ou, vá lá, simplesmente por aspirar o cheiro conhecido do nosso próprio canto no mundo?

Antes de mais nada, felicidade é uma experiência bioquímica. E a receita, no caso, tem no mínimo quatro ingredientes: coloque uma porção de dopamina e junte outra de serotonina. Acrescente endorfinas. O bom é temperar tudo com ocitocina, claro — e voilá.

Estou aqui falando de quatro neurotransmissores, mensageiros químicos cerebrais. A dopamina é a molécula da recompensa. E é interessante: ela se derrama bem antes da chegada do "prêmio", seja ele qual for.

Isso porque o cérebro precisa de dopamina para que você tenha gás o suficiente para correr atrás do que deseja — e , daí, no final dessa corrida, sentir a recompensa nos neurônios. Promessa de Ano Novo? É muita dopamina na cabeça. Se faltar dopamina, as promessas de ontem irão se desfazer antes do final da semana.

Serotonina? Ah, eu acho que essa é a mais intrigante das moléculas. Desempenha tantos papeis que é difícil rotulá-la. Ela já recebeu uma etiqueta: a de neurotransmissor da alegria. Até porque diversos antidepressivos se valem de mecanismos para o cérebro otimizar o uso dessa molécula, como se sua falta fosse a única e exclusiva culpada para tristeza sem fim — não deve ser bem assim e o fato de essas medicações não acertarem em cheio em todos os pacientes demonstra isso.

Sem dúvida a serotonina é uma das bases químicas da felicidade. Mas há um papel dela, reconhecido mais recentemente, que gostaria de frisar neste dia com ares de vida-nova-nova-vida:  ela é a substância da autoconfiança. Trabalhos apontam que pessoas que naturalmente produzem níveis mais elevados desses neurotransmissor sofrem menos de complexos de rejeição.

Logo, quando o cérebro dispõe de serotonina, há menos medo de errar e arriscar.  E esse  mecanismo então vai se alimentando: toda vez que a pessoa se propõe um novo desafio e diz "opa, eu consegui!" é mais um balde de serotonina na cabeça. Os psicólogos diriam: fulano teve uma boa experiência, fez algo que deu certo e, então, se sentiu mais seguro para buscar novas superações. Vale. No entanto, do ponto de vista estritamente bioquímico, é serotonina chamando mais serotonina.

Uma coisa curiosa: experiências realizadas na Universidade do Colorado afirmam que uma maneira de um indivíduo aumentar seus níveis de serotonina é justamente se comprometer com um desafio,  desde que viável para não se frustar. Foi o seu caso na noite de réveillon?

Outra forma é manjada: fazer atividade física durante meia hora, pelo menos, quatro vezes por semana. Se entre suas promessas para 2019 está largar o infeliz do sedentarismo, pronto, já matou dois coelhos em uma só tacada. Mas confie que será capaz e mantenha-se firme nos seus propósitos. Não é frase de cartão postal, é um dito-e-feito da neurociência, tá?

As endorfinas, por sua vez, têm um nome que entrega a que vieram: são as nossas morfinas internas, produzidas pela glândula pituitária e pelo hipotálamo. São jorradas, por exemplo, no orgasmo (quem está sozinho talvez já tenha pulado sete ondas pedindo um bom parceiro!). Ou insista naquele compromisso de atividade física, porque ela aumenta as endorfinas também. 

Mais do que dores físicas, as endorfinas dão provas recentes de afetaram a nossa capacidade de resgatar lembranças, ajudando o cérebro a selecionar as que nos fazem bem e nos movem adiante. As dolorosas, especialmente as que nos travam, ficam  distantes e isso explica por que ninguém fica pensando em coisa ruim quando está gargalhando junto de amigos.

A ocitocina é mais uma chave química importante. Já foi muito relacionada ao amor romântico — e não deixa de ser, mas não só a ele.  É a substância que a massa cinzenta libera quando o indivíduo se sente ligado a outra pessoa ou até mesmo ao seu cachorro. De novo no Colorado, eles fizeram uma experiência e mostraram que alguns minutos de afago no animal de estimação são capazes de aumentar a produção de ocitocina tanto no homem quanto no bicho.

E por que tudo isso? Por que o cérebro se dá ao trabalho de produzir tanta química para garantir a felicidade? Bem, lancei à pergunta ao neurocientista  Dean Burnett, autor do livro Happy Brain: Where Happiness Comes From and WhyE ele, professor da Universidade de Cardiff, no País de Gales,  foi claro: "pela nossa sobrevivência".

Burnett dá ao blog o exemplo: "Quando sentimos bem-estar chegando em casa é por voltamos a um lugar seguro. O cérebro reconhece lugares seguros e despeja substâncias que provocam essa sutil sensação de felicidade e pertencimento, o que nos assegurou, na evolução, que nossos antepassados  gostassem de voltar para a caverna em vez de pernoitar onde poderiam ser devorados."

Já o bom humor, segundo ele, é mais acionado quando vivemos experiências novas ou encontramos diante de nós uma situação totalmente inusitada. "Rimos diante do improvável. O cérebro nos presenteia com uma dose de humor para entender a situação e buscar soluções. A criatividade, fundamental para a sobrevivência, ajuda na resolução problemas e ela fica aguçada com as mesmas substâncias que nos fazem rir."

Se a felicidade então é questão de sobrevivência,  eu desejo que a gente sobreviva a 2019 com toda a força — com desafios, metas, autoestima, coragem. Mais, claro, dopamina, serotonina, endorfinas e ocitocina.  Ah, lembrando do detalhe de que a felicidade tem muito menos a ver com as nossas preferências e muito mais com essa habilidade de buscar viver bem, independentemente do que esteja acontecendo hoje e com o que poderá nos acontecer amanhã. Ser feliz é quase uma decisão. E, quando decidimos por isso, a química do cérebro ajuda.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.