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Blog da Lúcia Helena

Sopro no coração: morremos disso ou morremos com isso?

Lúcia Helena

22/01/2019 04h00

Crédito: iStock

Se você tem um bom médico, ele com certeza sabe ser todo ouvidos. Não, não só para o que você lhe diz na consulta — isso também, claro— , mas para os sons do seu coração. Ele deve prestar atenção em cada bulha, como é chamado nos bons cursos de Medicina qualquer barulhinho. Todo doutor é treinado, primeiro, para perceber um "tum, tá, tum, tá, tum, tá"… "Tum", emite o coração quando se contrai inteirinho feito uma toalha sendo torcida. "Tá" é o sinal sonoro de que relaxou. "Tum", portanto, é uma sístole. "Tá", a tal da diástole. Mas a audição precisa ficar apuradíssima. Às vezes, além de cliques e estalidos que vêm do peito, tão fugazes quanto significativos, é possível escutar o famoso sopro. Psssssss…Zzzzzz…

O sopro é um ruído — entre um tum  e um . Ou entre um e um tum. Não estou fazendo nenhuma gracinha à toa: o instante em que soa faz diferença para o diagnóstico do que está causando o barulho. Aliás, conta até o jeito como o sangue sopra em uma de suas passagens pelo peito — se é um soprinho, como se ele bufasse ligeiro, ou um soprão comprido. Isso  já diz muita coisa ao pé do ouvido de um médico usando o seu estetoscópio. 

Embora uma versão rudimentar desse equipamento tenha sido inventada por um francês em 1816 — um  tubo de papel laminado para canalizar os sons do tórax, acabando de vez com necessidade de o doutor grudar a orelha no peito do paciente —, a versão que conhecemos desse aparelho é dos anos 1960.  E continua insubstituível para os cardiologistas. Digo, para qualquer especialista.

Todo médico deve mostrar que é doutor nessa ausculta, até porque não existe um cardiologista em cada esquina, flagrando esses rumores estranhos. Nem o exame de ecocardiograma — o ultrassom do coração — precisa ser feito a torto e a direito quando não se ouve nada esquisito. Ou seja, imprescindível, o estetoscópio não é um colar enfeitando o jaleco. 

"Deve ser muito bem usado em pelo menos quatro pontos durante a auscultação", me ensinou o cardiologista Marcelo Queiroga, presidente eleito para o biênio 2020-2021 da Sociedade Brasileira de Cardiologia e que também é médico do Hospital Alberto Urquiza Vandereley, em João Pessoa, na Paraíba. Em um desses pontos, como me descreveu,  pode se ouvir o sangue passar pela válvula tricúspide.

Ah, sinto muito pelo nome esquisito dessa espécie de porteira. Mas, só para refrescar a memória, o coração tem quatro câmaras internas e o sangue que distribuiu oxigênio por todo o corpo volta por cima, pela primeira delas, o átrio direito. Quando relaxa ao som de um "", a tal da válvula tricúspide se abre e ele segue para a câmara inferior, o ventrículo direito.

Pois bem: se a válvula não se abre ou não se fecha direito por um motivo qualquer,  escuta-se um sopro. Ouviu bem? O problema pode estar tanto na hora de uma válvula liberar a passagem quanto no instante de interrompê-la. E, de qualquer forma, parte do sangue regurgita. Isso mesmo, volta pela brecha da válvula entreaberta produzindo um pssssss, zzzzzz

O segundo ponto a ser auscultado é o que fica bem na altura da válvula pulmonar, que se abre deixando sair o sangue para ser recarregado de oxigênio nos pulmões. De novo, tudo é uma questão desse abrir e fechar acontecer a contento.

O terceiro ponto é o mais famoso: nele, a ideia é ouvir os sons que vêm da válvula mitral, entre o átrio esquerdo, onde sangue volta todo oxigenado, e o ventrículo esquerdo, logo abaixo. Com certa assiduidade, a mitral faz aquele sonzinho de sopro. Porque é frequente existir o tal do prolapso. Prolapso quer dizer que ela vai um pouco além do que deveria no momento de se fechar. "Mas, cá entre nós, em geral é um soprinho moderado. A pessoa morre com isso, mas não morre disso", garantiu Marcelo Queiroga, um defensor do exame clínico bem feito com o estetóscópio.

Ele explica que existem os sopros inocentes — finalmente um nome engraçadinho. Mas é sério: é assim mesmo que os médicos chamam aqueles sopros que não estão relacionados a problemas graves, como os que podem surgir no quarto ponto,  que capta os ruídos nos arredores da válvula aórtica. Ela se abre e o coração jorra o sangue para circular por todo o corpo. Fique sabendo que de 3 a 5% dos idosos acima dos 75 anos têm um espessamento justamente aí, na válvula aórtica. Então, ela simplesmente não se move como deveria, prejudicando o corpo da cabeça aos pés pela falta de circulação sanguínea adequada.

Há também problemas congênitos: no caso, a pessoa já nasce com algum defeito nas válvulas. Outros são adquiridos, por exemplo, após um infarto. "Casos assim precisam ser acompanhados de perto, com pelo menos uma visita ao cardiologista por ano para ver a necessidade de se fazer uma plástica na válvula defeituosa ou até mesmo trocá-la", diz Queiroga ao blog. Não vale a pena operar antes do tempo, colocando um corpo estranho no organismo, isto é, a válvula substituta. Mas também não se pode marcar bobeira.

Até porque esses sopros que soam a encrenca, ao lado de outros sons — estampidos, um "tum-tá" abafado ou, ao contrário, quase berrando de tão alto — podem indicar, por exemplo, que uma das câmaras do coração já está se dilatando  por ser obrigada a forçar a passagem do sangue em cada batimento .

Do mesmo modo, há sopros passageiros. Recém-nascidos podem apresentar um soprão por causa de um canalzinho que levava o sangue oxigenado da mãe para o  seu coração e que não tem a menor serventia quando já saiu da barriga . Em alguns bebês, esse caminho alternativo demora mais para se fechar e… sopra.

Febre e anemia, quadros que aceleram os batimentos cardíacos, também causam sopros. Isto é, sopros inocentes, como o da maioria dos prolapsos da válvula mitral, que em geral são bem moderados. Esse bendito prolapso  também deve ser acompanhado, ninguém vai dizer o contrário. Sim, ele pode se agravar com o tempo, então não custa cautela . Mas, saiba, não é o que costuma acontecer. E, mesmo que um sopro continue na mesma, inocente, ele sempre fará ruído, até a última batida. E quase matará o dono do coração de susto ao vê-lo registrado em um laudo de exame. Aí, se acontecer com você, lembre-se: muita calma, às vezes um sopro é só um sopro, suspirando vida afora.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.