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Blog da Lúcia Helena

Largue já essa faca e não jogue nada fora: a melhor parte é a casca

Lúcia Helena

14/03/2019 04h00

Crédito: iStock

A lógica da natureza é das mais simples. Feita por ela para proteger a espécie que embala de sol e chuva, frio e calor, substâncias estranhas na terra ou no ar, bicadas de tudo o quanto é bicho e — ufa! — invasão de germes, é claro que a casca dos vegetais desenvolveu suas próprias defesas. Armou-se de vitaminas, mineras e bioativos, capazes de reparar estragos e espantar seus inimigos. Daí que, para a saúde dos consumidores mais atrevidos, esse invólucro —  seja ele  fino como a pele do pêssego ou duro feito a capa do abacaxi —  costuma ser tão ou literalmente mais precioso do que a polpa. No entanto, quase nunca vai parar no prato ou no copo. 

Digo mais, nem é preciso ser casca grossa: como qualquer escudo, ao seu modo toda casca é firme. A firmeza é conferida por uma belíssima trama de fibras. Mas, como eu aposto que você já sabe dessa história de que as cascas têm fibras aos montes, vou parar de falar disso  para mostrar aspectos inusitados, que podem despertar a sua vontade de morder  as sobras de uma suculenta fatia de melancia.

Ok, não vou forçar a amizade e oferecer de cara a opção de mastigá-las cruas. O revestimento de alguns frutos e vegetais pede um forno ou um fogão antes de você cair de boca. Mas acredite: há sempre um jeito saboroso de não se jogar nada fora, o que seria desperdiçar saúde, além de recursos consumidos desde o cultivo até o tratamento das toneladas de lixo orgânico que produzimos.

Melancia

Vou começar por ela. Pesquisadores do Departamento de Agricultura do governo americano concluíram que sua casca verdinha — a branca é o que chamam de entrecasca — é uma fonte espetacular de citrulina. Trata-se de um aminoácido que o nosso organismo não produz por conta própria e que é reconhecido por dar um chega-pra-lá na fadiga muscular. A citrulina faz até  mais: melhora o fluxo sanguíneo, ajudando outra molécula, a de óxido nítrico, a relaxar os vasos.

Ah, eu sei: mais difícil do que descascar alguns abacaxis é engolir o nome de certas substâncias. Mas fazer o quê?

Abacaxi

Por falar nele, um trabalho de duas universidades tailandesas, publicado no periódico Food and Bioproduct Processing, afirma que a casca tem de três a quatro vezes mais bromelina do que a polpa. Essa enzima tem notório poder antiinflamatório.

A nutricionista Natália Rodrigues, da Banco de Alimentos, acrescenta: "Na casca do abacaxi há mais vitamina C, cálcio, potássio e fósforo do que nas rodelas descascadas da fruta". Fiz questão de conversar com Natália por causa atuação fora de série dessa organização não-governamental criada pela economista Luciana Quintão. Há 21 anos, ela recolhe alimentos que seriam descartados pelo comércio e pela indústria por estarem próximos de perder o seu valor para distribuí-los em instituições cadastradas. E, na  intenção de melhorar a dieta das mais das 20 mil pessoas atendidas dessa forma em São Paulo, oferece oficinas em que ensinam a aproveitar saborosamente as cascas.

Natália esclarece que prefere se concentrar nos nutrientes clássicos das partes menos convencionais dos vegetais, sem falar tanto de componentes como flavonoides, compostos fenólicos e outros bioativos. "Não me conformo de ver as pessoas tomarem cápsulas de vitaminas e minerais enquanto jogam no lixo, junto com as cascas, o que equivaleria a frascos cheios desses suplementos." 

Banana

Em matéria de nutrientes, a casca ganhar da polpa é uma barbada. A banana que leva a fama pelo potássio tem muito mais desse mineral que equilibra a pressão arterial e espanta cãibras — advinhe! — na casca. Oferece mais pitadas de luteína, que faz bem à visão, também. E, de quebra, uma exclusividade dela: um bom tanto de triptofano, o que foi constatado recentemente por um time da Universidade do Texas, nos Estados Unidos, que colocou essa casca em receitas variadas, com o objetivo de incrementar  o aporte do aminoácido em pacientes com quadros leves de depressão. É que o triptofano é um precursor da serotonina, o neurotransmissor que eleva o nosso astral.

"Como outras cascas, a da banana pede para ser cozida, por ser mais rígida. Mas é de uma versatilidade incrível. É possível preparar farofas, bolos, usá-la até para fazer um brigadeiro', exemplifica Natália. O doce, ela esclarece, continuará sendo o mesmo — ou seja, tão gostoso quanto cheio de açúcar, exigindo dos seus fãs disciplina e a filha dela, a moderação. "Mas, quando incluímos a casca da banana, ao menos enriquecemos a receita com novos nutrientes", diz ela, que prefere uma cocada de casca de melancia.

Laranja

Surpresa eu fiquei com a casca  laranja, que arde na língua e às vezes chega a amargar a boca: ela tem quase o dobro de vitamina C, se comparada ao restante da fruta. Sem contar vitaminas do complexo B, cálcio, magnésio e potássio e uma família de flavonóides que, nos laboratórios da universidade americana Tufts, mostrou ser capaz de aliviar o risco de câncer.

Por causa do sabor intenso, o jeito é ralar ou cortar fininho para salpicar em saladas, sucos, molhos como vinagretes ou até mesmo para dar um toque em massas e receitas de carnes — lembrando que a vitamina C contribui para a absorção do ferro. "Mas vale lembrar que parte dela se perde quando a preparação vai fogo", diz Natália. Melhor usar a casca ralada no finalzinho do cozimento, então.

Limão

Já o que vi sobre o limão  não me espantou. Não é de hoje que surgem trabalhos sobre o limoleno, o óleo da casca, que confere aquele perfume típico. Ele é um antioxidante e tanto, capaz de diminuir a velocidade de processos degenerativos pelo corpo. Em animais — lembrando que, aí, fica difícil afirmar se o fenômeno se repete tal e qual no corpo humano —,  o limoleno conteve parcialmente o crescimento de tumores gástricos e de mama. Mas, só pelo efeito antioxidante, já garantido pela ciência, faz tempo que a limonada da minha casa é suíça, aquela em que o limão é batido inteiro.

Manga

Sua casca é superlotada de vitamina C e carotenoides. Mas não para aí: tem fitoquímicos da mesma família do resveratrol das uvas. Leia, o peito agradece. Segundo pesquisadores da Universidade de Queensland, na Austrália, os compostos da fruta ainda inibem o acúmulo de gordura entre as vísceras.

Eles compararam um extrato feito da casca com outro extraído da polpa — só o primeiro fez diferença. Em outro trabalho, liderado pela farmacêutica Sarah Roberts-Thomson,  o consumo regular do concentrado da casca diminuiu a resistência à insulina e as gorduras no sangue: "Ele parece agir pelos mesmos caminhos fisiológicos, por assim dizer, de certos remédios  para baixar o  colesterol e controlar o diabetes", disse ao blog. Claro,  extrato é extrato, casca é casca. Mas a pesquisadora não descarta que o consumo na dieta faça algum efeito. E essa casca, avisa Natália Rodrigues, é ótima batida em vitaminas, entre outras receitas.

Berinjela

Não posso deixar de fora do cesto a nasunina que tinge quase de azul marinho as berinjelas. Nutricionistas da Universidade da Califórnia, ainda no ano 2000, revelaram que a substância protegia contra alguns tumores. Ultimamente, porém, os mesmos pesquisadores se dedicam a estudar o efeito do consumo da casca azulada na saúde do cérebro.

Os resultados preliminares são animadores: exames de imagem mostram que a nasunina da berinjela melhora o fluxo sanguíneo da massa cinzenta e isso, em uma população que envelhece, pode se traduzir em benefícios para a memória. A equipe californiana também chama a atenção para o ácido clorogênico, mais um antioxidante. Ele, é verdade, é encontrado por todo o vegetal, mas a maior parte está … Você pode imaginar onde.

Não despedice a chance…

Poderia falar das maçãs, cuja casca, além de conter mais de metade das fibras da fruta inteira — mas prometi não falar delas, lembra? — guarda muita vitamina K, que evita trombos. Duro joga fora a oportunidade de falar também das cascas da batata, da cenoura, do maracujá… Não faltam motivos para você aposentar a faca. E, se usá-la, que seja para separar um belíssimo ingrediente.

Dê preferência, se possível, aos orgânicos. Lave bem com uma escovinha e, se for consumir a casca in natura, deixe a fruta ou o vegetal de molho em uma solução apropriada para a higienização. O site da Banco de Alimentos, por sinal, está cheio de receitas. O endereço é www.bancodealimentos.org.br Pedi à Natalia a da cocada de melancia para nós.

COCADA DE MELANCIA

  • 500 gramas de entrecasca de melancia relada, a parte esbranquiçada
  • 200 gramas de açúcar
  • 2 pacotes, de 100 gramas cada, de coco ralado seco
  • 20 gramas de manteiga
  • 100 gramas de casca de melancia, a parte verde
  • Cravos-da-índia para decorar

Em uma panela, caramelize metade do açúcar. Junte a entrecasca e vá mexendo em fogo brando. Acrescente então o coco e o restante do açúcar, cozinhando até o doce soltar da panela. Passe a manteiga em um refratário ou em uma superfície lisa, para não grudar, e despeje a cocada enquanto ainda está quente. Espere esfriar, polvilhe com a casca da melancia e enfeite com o cravo-da-índia. 

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.