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Blog da Lúcia Helena

Quer ser vegano? Vá ser vegano e feliz. Só não repita bobagem sobre saúde

Lúcia Helena

16/04/2019 04h00

Crédito: iStock

"O clima hoje vai esquentar", avisou a jornalista Amanda Bozza no início do programa Eva na Pan, na rádio Jovem Pan, quando eu fui lá em uma manhã dessas, convidada a falar sobre como busco minhas pautas sobre alimentação saudável. Ao meu lado, aquecendo a programação do dia, estava Luisa Mell, defensora dos animais ( causa muito nobre, não posso negar)  e praticante fervorosa do veganismo.

Falar de dieta vegana é como discutir o ovo ficando só na sua casca — arrisco a analogia justo com o ovo que, coitado, serviu de estopim para incendiar as ondas da rádio. Veganismo, já sabe, não é dieta — é algo bem maior, uma filosofia de vida em que seus adeptos não consomem qualquer produto de origem animal. Não abrem a boca para o bife, nem sobem no salto alto de um sapato de couro. É válido? Claro que é! Quem sou eu para me meter na filosofia de vida do outro?

No entanto, daí a disparar argumentos de saúde sem pé nem cabeça para defender esse modo de vida que combate o sofrimento dos bichos  é outra história.  E Luisa Mell, no contexto,  é o exemplo de franco-atiradora. Soltava disparates no programa em ritmo de metralhadora. Primeira rajada e eu ali,  no paredão: "O ovo, para quem não sabe, é a menstruação da galinha. Não sei por que as pessoas acham normal comer a menstruação de um bicho".

Ô, minha santa paciência, vamos lá…

Ovo nunca foi menstruação de galinha

Como eu, Luisa Mell e outras fêmeas humanas, ora, ora, as  galinhas têm ovários, cheios de óvulos. No caso das aves, eles lembram microscópicas gemas. Nas mulheres, um desses óvulos fica prontinho da silva, a cada mês, para ser fecundado. Se rolar o encontro com o espermatozóide, ele se grudará na parede do útero e começará ali mesmo a formar mais uma criatura para esse mundo superlotado com 7 bilhões de bocas disputando  um naco de comida. Aliás, o planeta dá mais e mais sinais de exaustão para alimentá-las. Fato.

Comigo, com Luisa Mell e com outras fêmeas humanas, se não rolar a fecundação, todo o revestimento uterino, preparado ao longo de um mês para servir de ninho, se descamará. Mas em aves, répteis, anfíbios e insetos…, ntz, ntz,  as fêmeas não têm útero, sinto lembrar.

Assim, as poedeiras — às quais sinceramente não desejo maus tratos — nem poderiam abrir o bico para reclamar de TPM, muito menos de cólica. Simplesmente botam seus óvulos fertilizados ou não, ops, ovos para fora. "O ovo é o óvulo da galinha", nos define Ricardo Santin, que está à frente do conselho do Instituto Ovos Brasil.

A associação equivocada de Luisa Mell  reforça outra ideia errada  — e, em pleno 2019, diria que um tanto arcaica –,  a de que o sangue menstrual é sujo. Raciocínio torto por raciocínio torto, a comparação com a menstruação faria até mais sentido com uma picanha suculenta, digo, por escorrer de suas fibras o líquido vermelho. Ali, sim, tem sangue.

Se óvulo fosse menstruação — ideia absurda — , aquele temaki com ovas de salmão seria então uma hemorragia. Bobagem imensa. Não saia repetindo isso em casa, se tem amor e respeito pela escolha do veganismo.

Veja bem,  quer mesmo ser vegano?  Seja um vegano feliz, como já disse de cara e repito. Use argumentos certeiros, como contar que as galinhas produzem de 200 a 300 ovos por ano quando, na natureza, poriam talvez uns 10% disso. É exaustivo. Para quem se preocupa com o sofrimento de animais, só faria sentido ir por esse caminho.

No entanto, priorizo no rol das minhas preocupações outro bicho: o bicho homem. No meu modo de ver, pensar no futuro do planeta é lembrar que somos animais também. Bem mais cruéis uns com os outros talvez. Mas, na hora da fome, tão cruéis quanto uma fera caçando na selva. Aliás, aquele cachorrinho fofo também não hesitaria em rasgar com os dentes outro animal que lhe abrisse o apetite. Em comum, nós e o cão, exibimos caninos.

Para o bicho homem, uma fonte de proteínas fenomenal como o ovo não é assim para se jogar fora. Ah, não, não vou entrar no mérito de outro argumento da minha interlocutora, com ar de nojinho: "o ovo saiu da xoxota da galinha. Se você  não se incomoda em comer algo que saiu da xoxota da galinha…" Ai, perdão, só repito com todas as palavras o que ouvi.

E o que responder? Deixo a resposta aqui, onde minhas linhas não podem ser interrompidas: não, eu não me incomodo e que sorte então que, tão sensível em relação a partes do corpo e ao que elas produzem, a ativista nem pare para pensar em qual seria o melhor adubo para hortaliças. Adubo orgânico, quero dizer. Uma pista, Luisa: esse buraco é mais em cima.

Eu não tomaria leite de macaca, mas poderia até fazer isso

Leite, segundo a defensora dos animais, seria a mesma história. Ela não entrou na questão da lactose, que renderia uma coluna por si só e aí seria um papo, digamos, mais saudável. A provocação foi pelo caminho do embrulho no estômago:  "Quer tomar leite de cadela? De macaca? Credo, o de vaca é a mesma coisa ", desafiava no ar.

Quase acertou. Forçando um pouco o paladar, sim, quase tudo igual. Ora, todo mamífero tem glândulas mamárias que secretam um líquido com mais ou menos porções dos mesmíssimos ingredientes básicos: água, açúcares como a bendita lactose, gorduras, proteínas, vitaminas e sais minerais. A  proporção desses componentes é que costuma ser sob medida para as necessidades dos filhotes de cada espécie. 

Se você  mamasse em uma baleia, segundo um trabalho da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que comparou a composição do leite de diversas espécies, no mínimo engordaria. Mais provável: teria uma baita dor de barriga, porque cairia pesado. Pois, ali, tem uma quantidade de gordura para quem precisa virar…  baleia! Já o leite de canguru, quem diria, quase não tem lactose. Poderia virar a modinha da vez…

Claro que é um exercício doido de imaginação. Até porque ninguém sabe que microorganismos esses leites nada convencionais carregariam. Mas, em termos de formulação, poderíamos encarar uns goles de qualquer leite.  A verdade científica  —  esta,  sim,  para ser levada muito a sério — é dolorosa, Luisa Mell: somos onívoros.

Explico. Nosso organismo evoluiu precisando comer de tudo um pouco para não morrer no meio de um caminho que durou milhares de anos. Nessa trajetória, ele ficou mais dependente, por natureza biológica, de um cardápio variado. Óbvio que, inteligentes como só nós, sempre podemos fazer escolhas alimentares pelos motivos mais diversos e pessoais. Mas, aí, o corpo humano se dará ao direito de reclamar por uma falta de costume que, volto a dizer,  é biológica. E milenar.

Não se tira um grupo de alimentos sem engolir nada em troca

"Qualquer dieta precisa ser bem orientada e planejada. Até mesmo quem é onívoro e teoricamente come de tudo pode apresentar lacunas no cardápio por descuidos", lembra, antes de mais nada, a nutricionista Carolina Pimental, professora titular  da Universidade Paulista e, diga-se, uma renomada estudiosa das dietas vegetarianas — vegana, incluída —, foco de sua tese de doutorado na Universidade de São Paulo.

"Ao excluir todas as fontes animais, com mais restrições do que fazem até mesmo certos grupos de vegetarianos,  o vegano merece um belo cuidado no que diz respeito ao cálcio, ao zinco, ao DHA, que é o ômega-3 e ao ferro. Mas o consenso mundial é que o maior ponto de atenção é mesmo com a vitamina B12″, diz a professora.

A B12 é crítica pra valer. Afinal, só é produzida por bactérias no aparelho digestivo de animais. Aproveito para recordar só mais um fora pronunciado no microfone: não, não tem a ver com falta de higiene pelo jeito como bichos são criados. E é bom que Luisa e todos os veganos tomem com disciplina sua suplementação, como ela disse fazer. O cérebro, em especial, reclama da ausência da B12. Reage originando problemas de memória.

E se o maior problema não for a carne?

Aviso, não sou dona de pastos. Mal engulo carne, se quer saber da minha intimidade à mesa. E seria louca se não reconhecesse que há um tremendo desequilíbrio na quantidade de cabeças de gado criadas para fornecer, por exemplo, os 25 quilos de carne bovina que cada brasileiro devora por ano, para ficar com os números só cá entre nós.

Podemos discutir — mas, de novo, seria outro texto, outro post… — a saúde do planeta, com tantos puns de vaca abrindo buracos de aumentando o efeito estufa e florestas derrubadas. Mas sem sermos simplistas e esquecermos as árvores que tombam para dar lugar às plantações de soja, leguminosa que muitas vezes segue para os empórios veganos a fim de fazer as vezes da carne. Nem dá para afirmar — viu, Luisa? — que a carne é o alimento com maior quantidade de agrotóxico, o que me fez corar como um morango impregnado de veneno. Isto posto…

A revista The Lancet publicou, na semana passada, a análise conduzida de 1990 a 2017 em 195 países. Os cientistas, assim como nós, querem entender o que, na nossa alimentação, está nos matando. Primeiríssimo colocada: a dieta  rica em sódio. Em seguida, não muito distante, a alimentação pobre em cereais, grãos integrais, frutas e hortaliças. "Nesse sentido, a dieta vegana protege demais a saúde na medida em que aumenta o consumo desses alimentos", deduz a professora Carolina Pimentel. Ou seja, entendam: pode ser mais uma questão de deixar espaço para vegetais no prato do que tirar a carne dali. Hipótese.

Proteína animal não dispara a pressão

"Não há qualquer evidência científica disso", me garantiu o cardiologista Luiz Bortolotto, diretor do Departamento de Hipertensão do Instituto do Coração, o InCor, em São Paulo. 

Eu contei para o professor Bortolotto  a história, também relatada no Eva da Pan, de que o marido de Luísa teria sido internado com a pressão nas alturas e esteatose hepática. Aí, ele resolveu virar vegano. A gordura no fígado, então, sumiu. E ele teria desmaiado na rua de tanto que a pressão baixou — no caso, bom esclarecer, porque ainda tomava remédios para a hipertensão e não porque a dieta vegana tire os sentidos.

Provavelmente, o rapaz emagreceu. Dietas à base de vegetais em geral são associadas a um menor peso, o que é ótimo. "E, no que diz respeito à pressão, a maior oferta de frutas, legumes e hortaliças à mesa deve ter aumentando proporcionalmente a ingestão de potássio ", especula Bortolotto. Ora, o mineral mais presente nos vegetais é reconhecido por baixar a pressão, o que não quer dizer que a carne consiga aumentá-la.

Também do InCor e conhecedor profundo da dieta DASH, elaborada por universidades americanas para domar a hipertensão, o cardiologista Heno Lopes tem um pé atrás com o veganismo: "Já vi moças e moços veganos chegando no meu ambulatório com  diversos problemas ameaçando o seu coração", aponta.  Para ele, pode fazer sentido em alguns casos "Os últimos estudos revelam que, mais do que ficarmos de olho na gordura animal, precisamos mirar nos carboidratos. O excesso deles pode ser bem mais perigoso".

O ponto levantado pelo professor Heno Lopes é o seguinte: desorientados por bobagens difundidas por aí, os veganos podem pecar por um exagero nas porções de pães, tubérculos e doçuras que não sejam as do mel.

Por isso vale reflexão. Qualquer informação sem pesar prós e contras — sempre há prós e contras — não faz bem a ninguém. É mais um no pé do próprio veganismo, movimento que merece todo o respeito pela escolha filosófica.

Aliás, no fim do programa de rádio,  ouvindo que o salmão era o alimento "mais cancerígeno do planeta",  saí para almoçar e, de tão nervosa por não ter retrucado no ato,  descontei cada saraivada que recebi no ar: comi duas "menstruações" de galinha de uma só vez. Estreladas.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.