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Blog da Lúcia Helena

Artrite reumatoide: por que essa é uma dor que ninguém compreende

Lúcia Helena

21/05/2019 04h00

Crédito: iStock

A incompreensão já começa pelo nome da especialidade que poderia aplacar o sofrimento: reumatologia. É sério, quando arrisco me intrometer na vida de alguém achando ser um caso para o reumatologista dar uma olhada, pela reação quase indignada parece que estou mandando a pessoa para os cafundós do planeta Medicina. Tem também aquele que me devolve uma expressão de "ah, sim, sim, pois, pois, já estava pensando mesmo num reumatologista".  Seria capaz de apostar que a maioria não faz a menor ideia de que figura se trata.

Se você sabe bem de quem estou falando, desculpa aí. Só queria colocar todo mundo na mesma linha deste texto, então… Reumatologista é o clínico do aparelho locomotor. Não cuida do osso quebrado, tampouco pega no bisturi e opera. Olha para o conjunto de esqueleto, músculos e articulações para entender tudo aquilo que atrapalha o movimento. E são mais de 150 doenças que fazem o nosso corpo, ao tentar sair do lugar, ranger, estalar, emperrar, doer e travar de vez. Uma delas é a artrite reumatoide, que acomete de 0,6% a 1% dos brasileiros. 

Não somos particularmente azarados. É assim por todos os cantos desse mundo que roda, ele próprio, aos trancos e barrancos. Artrite reumatoide não tem raça, nem endereço certo. Dói em todos. Empaca todos. Costuma ter, isso sim, uma idade mais provável para dar as caras, já que há um pico de casos entre os 35 e os 45 anos — longe de ser "doença de velhinho" —  e outro entre os 55 e os 60. Mas há até episódios, mais raros, de bebês com artrite reumatóide.

O desconhecimento é de largada: por que acontece? Não há resposta. Só posso bater na velha tecla de que a genética está por trás. Ninguém explica ainda por que, até a faixa dos 40 e poucos anos, a proporção é de três mulheres com a doença para cada homem. Essa preferência pelo feminino cai um pouco — duas para cada um — entre os sexagenários. 

Tem algo que a gente faça para detonar o estrago? Fumar, quem sabe.  O risco de desenvolver artrite reumatoide é três vezes maior entre fumantes. Estar acima do peso é outro fator. Sim, a doença é mais frequente entre os obesos — provavelmente porque eles já  têm um organismo mais inflamado.

Ora, a artrite reumatoide  é, na essência, uma inflamação disparada por um ataque autoimune. Por causa dela, podem surgir febrículas sem maiores explicações, problemas pulmonares, quadros oculares, mas a grande sofredora é mesmo a articulação.

Tudo começa pela membrana sinovial, que embala cartilagem e tendões, enfim, todo o pacote das juntas. Inflamada, ela cresce e se insinua para os ossos. Invade mesmo, cheia de ousadia, e tira tudo do prumo. Daí por que os dedos acometidos entortam e os membros ziguezagueiam.

Pior: a extremidade óssea vai sendo comida aos poucos pelo tecido que age feito um posseiro, até que a articulação inteira se fecha tomada por essa membrana fora de lugar, e não consegue mais se mexer. "Não faz tanto tempo, o destino de quem sofria de artrite reumatoide era uma cadeira de rodas", lembra a médica Rina Neubarth Giorgi, chefe da reumatologia do Hospital do Servidor  Público de São Paulo. Isso até que mudou bastante. Mas poderia ser bem melhor.

Uma batalha longe de ser vencida é aquela contra o relógio. "Há uma janela de oportunidade de seis meses a partir dos primeiros sintomas. Se a doença for tratada direito nesse período, ela pode ser contida antes de causar danos, apesar de não ter cura", avisa a doutora Rina. "Mas o que se vê é a pessoa perambulando perdida por cerca de dois anos até ficar diante do reumatologista."  Especialista que ela aprende a duras penas que existe.

Sejamos realistas: seis meses não são exatamente uma oportunidade incrível. Passam depressa. Se eu sentisse as minhas mãos doloridas culparia o blog, que me faz tamborilar no computador. Quem corre na esteira, talvez acuse o exercício por um tornozelo que amanhece enrijecido, parecendo precisar de aquecimento para acordar. Joelhos inchados? Muito tempo em pé, uns cogitam.  Por aí vai o descaso. 

Uma pista: dificilmente a doença ataca só uma articulação. Já chega chegando em articulações pequenas, médias e… enormes. A dor pode estalar nos ombros, enquanto uma leve rigidez pode aparecer na famosa ATM que promove o abrir e o fechar da boca e o dedinho do pé incha do nada. Mas nossa tolerância com a chatice de um corpo dolorido é incrível.

Quando a situação degringola de vez e o tormento intensifica, começam os comprimidos de antiinflamatório tomados por conta própria. Alívio tão imediato quanto temporário. O ortopedista, quando procurado, talvez tire aquela água acumulada, típica da junta inflamada, e infiltre medicação. Outra vez, alívio imediato, durando aí uns seis meses. Aquela janela de oportunidade? Nessa altura, já se fechou. 

Como não há reumatologista para todo mundo, o plano é treinar clínicos que atendem em unidades básicas  a reconhecer o quadro para, quem sabe, a iniciar o tratamento correto, diminuindo a perda de tempo. Tomara.  "A artrite reumatoide é comparável ao câncer, no sentido de que a chance de sucesso tem tudo a ver com agir muito cedo", me disse a doutora Rina.

O diagnóstico pode ser feito com exames laboratoriais que deduram a presença de certos anticorpos por trás dos ataques às articulações, somados ao ultrassom com doppler, que mostra o fluxo de líquidos acumulados pelas estruturas articulares.

O tratamento, em geral, começa com imunossupressores, que ainda são a alternativa mais barata, com a ressalva de que o paciente precisa ficar esperto porque corre maior risco de contrair infecções. Quando falham — o que acontece em 56% dos casos —, os médicos indicam uma geração de medicamentos mais moderna, a dos imunobiológicos. Eles agem direto em determinado alvo. O que, compreenda, é melhor, mas ainda assim não é de todo bom: um único gene por trás da artrite reumatoide já é capaz de criar várias proteínas contra as articulações. Cada uma delas, um alvo a ser bloqueado.

A última geração de drogas, no entanto, age  diretamente no núcleo das células, no que os cientistas chamam de vias de sinalização. Ou seja, calam o bico dos genes envolvidos e impedem o ataque de várias moléculas  ao mesmo tempo. Nesse cenário, o que se comemora no Brasil é a chegada de um medicamento oral desse naipe que já provou sua eficácia na Europa e nos Estados Unidos, exigindo que o paciente engula apenas um comprimido por dia — uma vantagem em relação às injeções diárias de drogas com efeitos similares ou até mesmo a outra medicação oral já existente, mas que exige duas doses por dia. O nome da novidade não é dos mais fáceis: baricitinibe.

De acordo com os estudos, em 12 semanas a medicação controla a doença e reduz as dores em 70%. É, sim, excelente.  Mas os médicos passaram a fazer  um "mea culpa": afinal, o que é conviver com os 30% de dor que restam? No dia a dia, esse questionamento deixa de ser meramente filosófico. Hoje, os reumatologistas estão revendo os seus conceitos de sucesso.

Uma pesquisa recente, realizada em 40 países com mais de 3,8 mil pacientes com artrite reumatoide, mostra que antigos critérios, como ver se as articulações desincharam e registrar a diminuição de incômodos por meio de questionários — que antes faziam a turma soltar rojões na avaliação do tratamento — não mostram tudo.

Dois terços dos indivíduos com artrite reumatoide, mesmo com os exames "ok" e melhora notável por esses parâmetros clássicos, afirmam que usar as mãos continua difícil e que, por isso, tarefas do dia a dia cansam muito mais. Metade mudou de hábitos para driblar gestos dolorosos ou complicados. Até sexo, para alguns respondentes, às vezes é mais esforço do que prazer, sem posição na cama que resolva.

A maioria se queixou de ser acusada de fazer corpo mole, no trabalho ou até mesmo em casa, por não dar conta de realizar alguns movimentos ligeiro. E, veja só, praticamente todos disseram que, sem o inchaço nem a deformidade nos ossos — isto é, sem o sofrimento visível — , se tornaram uns grandes incompreendidos. Pois é, eu sempre me pergunto se dor se mede…

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.