Um eletrodo na direção certa: a de controlar o Parkinson
O cérebro tem seus 50 tons de cinza . O mais escuro deles é o que se vê em uma região conhecida como substância negra. Diria que ela fica no miolo dos miolos e é lá que é produzida a dopamina, neurotransmissor que está em escassez na massa cinzenta de quem sofre da doença de Parkinson. Na falta da dopamina, o corpo parece demorar para ouvir qualquer ordem para se mover, ficando rígido e lento. Ou os comandos para se mexer chegam bastante truncados, descoordenados, sem motivo e fora de hora — então, tudo treme.
Diz a lenda que se vivêssemos mais de de 200 anos, inevitavelmente todos teríamos Parkinson. As células dopaminérgicas, que produzem a substância capaz de organizar os movimentos, vão morrendo antes de nós. Daí aquela imagem do velhinho quase centenário com as mãos trêmulas. Mas no Parkinson essa morte é precoce. As tais células dopaminérgicas vão pifando logo cedo aos montes.
Há mais de 30 anos já se sabe que a estimulação cerebral profunda ajuda a controlar sintomas clássicos dessa perda precoce, como o tremor e a rigidez. Na versão moderna do tratamento, estou falando de eletrodos implantados nas profundezas do cérebro — daí o nome —, que disparam impulsos elétricos para modular as trocas de mensagens em agrupamentos específicos de neurônios, como o subtalâmico e núcleo globo pálido, região que tem um outro tom de cinza, desta vez bem esbranquiçado. Mas implantar eletrodos na cabeça nunca foi muito simples. Antes que pense na cirurgia cerebral — o que também seria a minha primeira aposta —, adianto que a dificuldade era outra.
Há cinco anos, a neurocirurgiã funcional Vanessa Milanesi Holanda estava justamente instalando eletrodos em um paciente com Parkinson quando ouviu dele: "Doutora, estou me sentindo triste, triste demais. É muita tristeza, doutora…", suplicava o homem com um pequeno orifício no topo da cabeça. Médica da BP — Beneficência Portuguesa de São Paulo, e agora recém-convidada para lecionar na Mayo Clinic, nos Estados Unidos, naquele instante Vanessa Holanda parou tudo no centro cirúrgico.
A médica queria repensar por uns poucos minutos no que estava fazendo. Ah, sim, ela — uma das raríssimas profissionais mulheres que operam cérebros neste país — implanta o eletrodo sempre com o paciente bem acordado, só com uma anestesia local. "Eu preciso que ele me conte o que sente enquanto eu testo o sistema", justifica.
A depressão que o sujeito operado sentiu no momento desse teste foi marcante — o empurrão que faltava para ela arrumar as malas e seguir para a Universidade da Flórida a fim de entender ainda mais a segmentação das áreas cerebrais envolvidas no movimento e como estariam cercadas de neurônios que teriam a ver com o nosso humor, por exemplo. Pois bem, sua temporada americana resultou em um trabalho que acaba de ser aceito para publicação internacional.
Hoje a doutora Vanessa sabe que, nesses pequenos agrupamentos de neurônios, 1 milímetro a mais ou a menos para um lado ou para outro, para cima ou para baixo, já pode ser uma distância do alvo suficientemente grande para afetar as emoções, prejudicar a fala e a marcha, provocar contorções na face e outros efeitos adversos que, infelizmente, ocorrem em 15% a 20% dos operados. Popular vestir um santo para despir o outro. Diga-se: existem pelo mundo 160 mil indivíduos com Parkinson vivendo com eletrodos implantados no cérebro.
Naquele dia, a reação do paciente fez a neurocirurgiã praticamente reiniciar o procedimento. Trocar o eletrodo de lugar. Ora, era preciso afastá-lo literalmente do endereço daquela tristeza toda, atiçada sem querer pelos estímulos elétricos. "Mas hoje, com o que chamamos de sistemas direcionais, não seria preciso nada disso", resume.
O sistema direcional, no caso, é batizado de Infinity DBS. Foi aprovado no final do ano passado pelo FDA nos Estados Unidos e trazido para o Brasil pela empresa Abbott. Quis fuçar e ver de perto a novidade, que consiste em três partes — até aí, como os sistemas anteriores.
Uma delas é o gerador, que tem as dimensões de uma caixa de fósforo. Lembra um marca-passo. A doutora Vanessa descreve: "Ele é colocado sob a pele, na região da clavícula, em uma segunda etapa da cirurgia". Mas, dessa vez, com o paciente sob o efeito de anestesia geral, depois de ter ficado de três a quatro horas acordado enquanto a médica introduzia um par de eletrodos em sua cabeça e fazia os tais testes com a ajuda de um iPad e do bluetooth.
Sim, sempre um par — um eletrodo à esquerda e outro à direita do núcleo de neurônios escolhido como alvo. Aliás, com o sistema Infinity DBS, o tratamento poderá ser ajustado em qualquer momento depois, usando esses recursos descomplicados — um iPad nas mãos da equipe multidisciplinar e o bluetooth.
Talvez se pergunte — eu me perguntei!— por que botar o indivíduo para dormir depois que, digamos, o pior já passou. Eu, pelo menos, iria preferir ficar apagada enquanto estivesse com a cabeça aberta. Mas então me lembrei que o cérebro em geral sente mais as dores alheias, ou seja, na maioria das vezes ele é tomado de compaixão pelo suplício de outras partes do corpo.
A primeira etapa do procedimento, portanto, descontada a aflição de imaginar a cena, é bem suportável. Mais doloroso seria, sem anestesia geral, passar a extensão, isto é, o fio de silicone com um comprimento de 40 a 50 centímetros, que vai do eletrodo posicionado na massa cinzenta até o gerador na altura do peito, fazendo o trajeto pela sensível parte lateral do pescoço.
É na ponta ativa da extensão, a do eletrodo fino como um palito de dente e do tamanho de uma cabeça de fósforo, que mora o segredo. "Antes os eletrodos estimulavam a região em 360 graus", me explicou o engenheiro elétrico Bruno Domingues, da Abbott. "Resultado: o médico conseguia estimular o que queria, ou seja, a área que, pelos exames de ressonância, seria o ponto exato para melhorar os sintomas do Parkinson. No entanto, os sistemas anteriores também estimulavam a vizinhança, provocando efeitos indesejáveis e talvez até surpreendentes."
Isso, claro, abalava a confiança de muitos na estimulação cerebral profunda, receio que deve diminuir com o sistema direcional. "O risco de efeitos adversos é praticamente nulo agora", conta, animada, Vanessa Holanda.
O sistema direcional evita esses perrengues ao focar os impulsos elétricos em um alvo muito específico, sem afetar as redondezas. Justamente por acertar na mira, há uma outra vantagem: não gasta energia com áreas que não precisam do tratamento e, com isso, o gerador pode durar mais do que cinco anos, período após o qual talvez tenha de ser trocado em outra cirurgia. Os eletrodos, não. Estes podem ficar na cabeça para sempre.
Para a estimulação ser bem direcionada ao alvo, durante a cirurgia o paciente fica com um equipamento ao redor do crânio. São arcos metálicos que lembram um capacete e funcionariam, em uma comparação simplista, feito um GPS, indicando as coordenadas e o ângulo exato no qual deve ficar eletrodo.
"O que a estimulação faz", explica a doutora Vanessa Holanda, "'é compensar a falta da dopamina." Em uma primeira fase, após o diagnóstico, a gente sabe que o doente de Parkinson vive uma espécie de lua-de-mel com os remédios que conseguem repor a substância. Mas essa temporada feliz termina quando o organismo deixa de reagir tão bem à medicação e os tremores aparecem com tudo.
"Por isso, só cogitamos operar depois de cinco anos de diagnóstico. Antes disso, os medicamentos funcionam bem", diz a médica. Não são candidatos à operação, porém, pacientes com psicose, depressão severa e outros problemas que precisam ser avaliados por uma equipe multidisciplinar.
Mas algo deve ficar claro: os tremores que tanto assustam quem convive com o Parkinson são o começo de uma história que ainda implicará em mudanças de humor, problemas de cognição, alterações importantes no sono e outros sinais da morte das benditas células dopaminérgicas. Afinal, elas não estão envolvidas apenas com os movimentos.
A eletroestimulação, em princípio, controla os sintomas nos movimentos e, daí, já melhora demais a qualidade de vida. Apesar disso, a doença continua progredindo em silêncio, sob o véu desses estímulos elétricos. Ao menos até que se prove o contrário … Mas vou contar: tem gente querendo provar o contrário!
Alguns estudos sugerem que, sim, a estimulação cerebral profunda poderia evitar que o Parkinson avançasse e, se for assim, a cirurgia não deveria esperar os cinco anos de praxe. É o que uns dizem… Calma, o jeito é aguardar mais trabalhos para tirar qualquer conclusão.
De qualquer maneira, faz muito sentido pensar que pacientes com o implante evoluam mais devagar. Isso porque, sem tremer tanto, a pessoa consegue fazer atividade física. E de uma coisa a Medicina já tem plena certeza: nada melhor para produzir dopamina do que colocar o corpo em movimento. O que, com os tais eletrodos na direção certa — liquidando tremores sem afetar a marcha —, será mais fácil.
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